O curso era novo, o professor um designer. Não tinha qualquer formação em história. As aulas, decidiu, não podiam ser secas e académicas. Seriam pessoais, intrigantes, um tudo nada teatrais. Na primeira de todas, mostrou gravações em fita magnética de Marinetti, Lissitsky e Gropius, cada um lendo os seus manifestos num inglês eriçado de sotaque. Os alunos ouviram, com a atenção não diluída dos primeiros dias. No fim, revelou-lhes que ele próprio, disfarçando a voz, tinha gravado os textos. Estava convicto que a melhor forma de explicar uma área ainda nebulosa como o design gráfico seria através do testemunho dos seus melhores praticantes, e não através do conhecimento indirecto, teórico, dos historiadores.
Ao simular a voz dos pioneiros, o professor de história não estava apenas a enriquecer a experiência dos alunos, mas a falsificar por instantes, nem sequer um documento, porque os textos existiam, mas a sua autenticidade – a ligação material directa entre esse documento e a pessoa que o escreveu, neste caso o registo da sua voz. Ao instalar dentro da história do design este grau ínfimo, superficial, de ficção, o professor estava, provavelmente sem o saber, a chamar a atenção para um problema importante, já colocado por Michel Foucault ou Hayden White: o historiador nunca se limita a apresentar documentos de modo neutro mas, através da sua actividade, constrói-os.
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Forensic Architecture, ou uma guerra de imagens no limiar do design

A 12 de Fevereiro deste ano, o departamento de Homeland Security dos Estados Unidos da América classificou o arquitecto britânico de origem Israelita Eyal Weizman como um risco para a segurança do país. O seu visto de entrada foi revogado, impedindo-o de viajar para a Florida, onde estava a ser montada uma retrospectiva do colectivo que fundou, os Forensic Architecture. Quando pediu um novo visto na embaixada norte-americana em Londres, foi informado que um algoritmo o tinha identificado como ameaça. É provável que um cruzamento entre as viagens que fez, os locais que visitou e as pessoas e organizações com quem contactou tenha desencadeado a decisão.
Criados em 2010, como um núcleo de investigação da Goldsmiths (Universidade de Londres), os Forensic Architecture especializam-se na criação de técnicas experimentais para investigar crimes de guerra, em grande medida baseando-se em métodos e tecnologias de projecto oriundas da arquitectura. O colectivo inclui arquitectos, artistas, cineastas, jornalistas, cientistas e advogados.☀︎ Já abordaram casos relacionados com a crise de refugiados no Mediterrâneo, com a ocupação dos territórios Palestinianos, com a tortura de prisioneiros pelo regime de Bashar Al-Assad na Síria, com a investigação de crimes sobre populações civis no Guatemala. Em menos de uma década, o seu trabalho foi apresentado perante tribunais penais internacionais e na Assembleia Geral da ONU. Figurou também em exposições e bienais de arte, arquitectura e design, a mais notória sendo a Whitney Biennial de 2019, onde apresentaram provas de que a empresa Sierra Bullets, em parte propriedade de Warren Kanders, vice-presidente da bienal, tinha fornecido munições à Israeli Defense Force (IDF) usadas contra acções de protesto na faixa de Gaza, constituindo um provável crime de guerra.
Era este percurso que um algoritmo tinha classificado como ameaçador. As movimentações e a rede de contactos de um investigador é, evidentemente, bastante semelhante à de quem investiga – do lado da recolha bruta de dados, confundem-se vítimas, criminosos e investigadores. A própria condição de vítima é com frequência obscurecida de modo tático. A vítima civil de um acto de guerra ilegal é, por exemplo, apresentada pelo agressor como um terrorista. A revogação do visto de Weizman constitui um exemplo de obscurecimento tático, onde a própria decisão é remetida para a instância inumana representada pelo algoritmo, cujos critérios ou procedimento não são públicos.
Uma das investigações dos Forensic Architecture focou-se na campanha norte-americana de assassinatos de guerrilheiros Talibã através de drones na fronteira paquistanesa com o Afeganistão entre 2004 e 2014. Parte da ofensiva foi feita em segredo, recorrendo a mísseis concebidos com o objectivo de assassinar pessoas dentro de edifícios sem afectar a estrutura destes. Os projécteis entram pelo telhado e têm uma detonação temporizada de maneira a explodir num andar específico. O furo de entrada tem uma dimensão que passa despercebida nas imagens recolhidas por satélite – o que, associado a uma proibição de recolha de imagens na zona, dificulta a investigação destes ataques, necessariamente feita à distância, dadas as restrições de circulação.
Datar o Porto 2001 – sobre a duração do design
A programação prevista para o Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura decorreu mais ou menos dentro da data indicada no rótulo da embalagem, com algumas notáveis excepções: a Casa da Música, cuja inauguração estava prevista para o final de 2001, só ficou pronta quatro anos depois. Em outros casos, o desfasamento foi discreto: a imagem do Porto 2001 foi concebida dois anos antes do evento. É compreensível: uma iniciativa com o alcance de uma capital europeia da cultura precisa de aparecer diante do seu público e dos seus interlocutores institucionais com uma imagem perfeitamente definida muito antes das suas portas abrirem.
Porém, numa área como o design gráfico, onde fontes, cores, formatos ou praticantes entram e saem de moda numa rotação rápida, dois anos podem ser mais do que uma eternidade, podem ser dois universos distintos, antagónicos, ainda por cima quando a meio passa a fronteira simbólica do milénio.
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