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Esquecer o design?

«Forget photography» tem uma capa engenhosa para um livro que está a ser uma grande leitura.1

Andrew Dewdney acredita que o paradigma da fotografia já não explica o que ele chama a imagem em rede. A fotografia também já não consegue explicar o seu papel central na construção do capitalismo, da supremacia branca e do patriarcado.

Dewdney propõe, em suma, que se esqueça a fotografia. Não quer apagar a história da fotografia, mas desnaturalizar a fotografia como um princípio crítico e histórico. Procura paradigmas alternativos que consigam lidar com a imagem em rede – imagens geradas por computadores, imagens feitas para serem usadas por computadores, imagens produzidas e usadas por pessoas mas cujos usos não são estéticos, etc.

Um dos argumentos centrais do livro é que a fotografia morreu. Sobrevive enquanto morto-vivo. Limita a nossa capacidade para compreender o presente, obrigando-nos a olhá-lo através das lentes da fotografia e da arte. Na capa, os dois retângulos tagados como «fruta» e «tigela» são uma natureza-morta vista por um sistema de inteligência artificial, um tema clássico da história de arte recriado por uma visão inumana. A imagem ilustra perfeitamente esse argumento.

Mais ainda: leva a questões sobre design que ultrapassam o âmbito do livro.

Ainda não acabei «Forget photography». Leio-o em versão ebook. Para ilustrar este artigo, procurei na internet a fotografia de um exemplar físico. No motor de busca, quase todos os resultados eram imagens digitais. Rectângulos sem espessura ou indício de matéria. Um único resultado, o que reproduzo no começo deste texto, apresenta o livro como objecto físico. Porém, a uniformidade do sombreado, o brilho da dobra da lombada, apontam para uma simulação. É uma imagem e não uma fotografia.

Há serviços na internet que geram automaticamente a imagem de um livro físico a partir de uma capa. Os alunos usam-nos para perceberem como ficarão as publicações que concebem nas minhas aulas. A maioria do design gráfico é produzida com o auxílio de todo o tipo de algoritmos. Programas como o InDesign ou o Illustrator automatizam desde o alinhamento óptico até à gestão dos cortes de linha nos parágrafos.

O design é em, em larga medida, produzido num meio onde humano e máquina se fundem. A imagem da capa de «Forget Photography» é realmente o output de um sistema de AI? É um objecto de design sem designer? Ou um designer a simular o design de uma máquina? É difícil averiguar sem ler os créditos.

O design enquanto disciplina também é assolado pelas dúvidas enunciadas em «Forget Photography». Tornou-se um lugar comum lamentar a profusão de usos não-regulados da palavra «design». Todos os meses leio ou ouço um designer a lamentar o excesso de design. Esta abundância assemelha-se à profusão de imagens que se escapam cada vez mais ao paradigma da fotografia. Tem as mesmas causas.

É raro enunciar-se as dúvidas disciplinares do design do mesmo modo que Dewdney enuncia as da fotografia. Aqui fica a tentativa: estando o design quase automatizado e estando em todo o lado de formas radicalmente novas, faz sentido continuar a chamar-lhe «design»? Pode o design enquanto disciplina explicar ou até simplesmente enumerar esta abundância de designs?

Acredito que a resposta a ambas as perguntas pode ser não. Porém, é mais difícil imaginar paradigmas alternativos ao design do que à fotografia. No design não podemos recorrer sequer a um conceito alternativo e mais abrangente como a imagem. «Design» tanto nomeia uma área disciplinar profissionalizada como, pelo menos na língua inglesa, o acto mais geral de projectar ou conceber.

Na língua portuguesa, o nome «design» é uma importação recente. Não tem sequer um equivalente verbal. É um objecto e um sujeito mas não uma acção. A disciplina é também relativamente nova. Foi difícil implantá-la. Houve inúmeros actos de resistência – dos tipógrafos que viam a sua actividade ameaçada, de quem se recusa a usar uma palavra inglesa, etc. A ideia que o design é uma actividade eterna e inerentemente humana ignora essas resistências. Sob o pretexto de expandir a história do design, rupturas e transições difíceis são esquecidas. Apagando-as, não será possível alcançar o objectivo de descolonizar o design ou de expor as suas raízes capitalistas.

É essencial esquecer, nem que seja por um momento, o design. Ver todo um conjunto de práticas não como potenciais apêndices do design mas como paradigmas alternativos, com a sua própria coerência, os seus métodos, as suas políticas, e as suas identidades.

Esquecer o design. Perguntar o que seria o mundo ou o presente sem design. O design gráfico enquanto disciplina tem seguido o caminho contrário. Enquanto os designers se queixam do uso não-regulado da palavra design, aplicam-na a artefactos cada vez mais remotos. Tudo se torna design – um livro iluminado, um papiro, a ornamentação numa lança pré-histórica.

Em nome da unidade disciplinar, alisam-se descontinuidades e rupturas. Uma delas, dissimulada à vista de todos, separa a imagem do design gráfico. Este tem-se tornado num quase sinónimo de tipografia, e, mais ainda, de texto. A imagem só é aceite como um complemento do texto. Ou então sob a forma de imagem corporativa – e «logo», no seu sentido original, significa «palavra».

Talvez o design já não queira ter nada que ver com a imagem. Ocupa-se acima de tudo com a visualidade do texto. Um objecto que não tenha texto – um poster, uma publicação – é frequentemente recusado enquanto design.

Exemplo de layout como foto-montagem. As imagens eram recolhidas consoante o papel a desempenhar na página. Podiam ser empregues como módulos reutilizáveis.

Houve épocas em que se assumia que o designer era também um produtor de imagens. Laszlo Moholy-Nagy propunha o futuro do design como a fusão de tipografia com fotografia, a que chamava Typohoto. Letras e imagens seriam pixels sobre a página. As revistas e livros de design de meados do século XX estavam cheias de reflexões sobre a imagem. Desde Moholy-Nagy a Josef Müller Brockmann passando por Herbert Spencer, todos produziram reflexões sobre a imagem, não apenas no sentido de um conteúdo mas como algo que é produzido e trabalhado pelos designers.

Uma das principais diferenças para com a arte é a preocupação central do design para com a função. O abandono da imagem assinala uma desistência por parte do design de pensar as funções da imagem. Uma das consequências é o tratamento da imagem como um conteúdo exterior e não algo cujas funções primárias podem ser decididas pelo design.

Durante o modernismo, existiu um design da imagem. Nas décadas de 1920 e 1930, algumas revistas de actualidade eram impressas usando rotogravura, uma técnica onde a totalidade da página, incluindo o texto, era produzida usando processos fotográficos. Estas publicações eram planeadas como uma montagem, sendo as fotos tiradas a pensar na sua função final. O design ditava à partida o enquadramento, o ângulo, a encenação e até o recorte da imagem. A fotografia não era um conteúdo. Era parte integrante do processo do design.

Hoje, o mais comum é a imagem a ser tratada pelo designer como mais um rectângulo no meio das caixas de texto. Há uma divisão de tarefas: o design cuida da visualidade do texto e dos elementos que interagem com este; a fotografia (ou a ilustração) tratam da imagem.

Dewdney critica este fechamento disciplinar. A solução, esquecer a fotografia, possibilita esquecer o design. Tal não significa apagá-lo mas tomar consciência dele enquanto um objecto sujeito à história e não uma constante. A história do design deveria ser também a história de como mudou radicalmente enquanto conceito. Há um esforço para fazer histórias do design que se preocupam em apresentar o design como dependente de distintos contextos técnicos, sociais e formais. Porém, a ideia do design como uma constante implica que, destas condicionantes, surge sempre o mesmo design.

Notas:

1. Estou a lê-lo porque veio referenciado na Revue Faire #41, cujo tem é «Forget (Fashion) Photography»

Alisar a curva

Mit Press (https://thereader.mitpress.mit.edu/flattening-the-coronavirus-curve-is-not-enough/)

É bem possível que a imagem gráfica que nos vai ficar desta epidemia do Covid-19 seja esta, a de duas curvas sobrepostas, uma elevando-se alta e estreita, a outra longa e achatada. A primeira curva ilustra a progressão livre do contágio, manifestando-se num pico de casos que ultrapassa os recursos do sistema de saúde. A segunda mostra como, através do isolamento social e da quarentena auto-imposta, se pode retardar a evolução da epidemia de modo a que as ocorrências se espalhem ao longo do tempo, mantendo-se abaixo das capacidades do sistema saúde. Em suma: ilustra, de modo simples, directo e eficaz, duas alternativas, duas estratégias, argumentando a favor de uma delas.

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Forensic Architecture, ou uma guerra de imagens no limiar do design

Investigação sobre um assassinato por drone em Miranshah, no Waziristão do Norte.

A 12 de Fevereiro deste ano, o departamento de Homeland Security dos Estados Unidos da América classificou o arquitecto britânico de origem Israelita Eyal Weizman como um risco para a segurança do país. O seu visto de entrada foi revogado, impedindo-o de viajar para a Florida, onde estava a ser montada uma retrospectiva do colectivo que fundou, os Forensic Architecture. Quando pediu um novo visto na embaixada norte-americana em Londres, foi informado que um algoritmo o tinha identificado como ameaça. É provável que um cruzamento entre as viagens que fez, os locais que visitou e as pessoas e organizações com quem contactou tenha desencadeado a decisão.

Criados em 2010, como um núcleo de investigação da Goldsmiths (Universidade de Londres), os Forensic Architecture especializam-se na criação de técnicas experimentais para investigar crimes de guerra, em grande medida baseando-se em métodos e tecnologias de projecto oriundas da arquitectura. O colectivo inclui arquitectos, artistas, cineastas, jornalistas, cientistas e advogados.☀︎ Já abordaram casos relacionados com a crise de refugiados no Mediterrâneo, com a ocupação dos territórios Palestinianos, com a tortura de prisioneiros pelo regime de Bashar Al-Assad na Síria, com a investigação de crimes sobre populações civis no Guatemala. Em menos de uma década, o seu trabalho foi apresentado perante tribunais penais internacionais e na Assembleia Geral da ONU. Figurou também em exposições e bienais de arte, arquitectura e design, a mais notória sendo a Whitney Biennial de 2019, onde apresentaram provas de que a empresa Sierra Bullets, em parte propriedade de Warren Kanders, vice-presidente da bienal, tinha fornecido munições à Israeli Defense Force (IDF) usadas contra acções de protesto na faixa de Gaza, constituindo um provável crime de guerra.

Era este percurso que um algoritmo tinha classificado como ameaçador. As movimentações e a rede de contactos de um investigador é, evidentemente, bastante semelhante à de quem investiga – do lado da recolha bruta de dados, confundem-se vítimas, criminosos e investigadores. A própria condição de vítima é com frequência obscurecida de modo tático. A vítima civil de um acto de guerra ilegal é, por exemplo, apresentada pelo agressor como um terrorista. A revogação do visto de Weizman constitui um exemplo de obscurecimento tático, onde a própria decisão é remetida para a instância inumana representada pelo algoritmo, cujos critérios ou procedimento não são públicos.

Uma das investigações dos Forensic Architecture focou-se na campanha norte-americana de assassinatos de guerrilheiros Talibã através de drones na fronteira paquistanesa com o Afeganistão entre 2004 e 2014. Parte da ofensiva foi feita em segredo, recorrendo a mísseis concebidos com o objectivo de assassinar pessoas dentro de edifícios sem afectar a estrutura destes. Os projécteis entram pelo telhado e têm uma detonação temporizada de maneira a explodir num andar específico. O furo de entrada tem uma dimensão que passa despercebida nas imagens recolhidas por satélite – o que, associado a uma proibição de recolha de imagens na zona, dificulta a investigação destes ataques, necessariamente feita à distância, dadas as restrições de circulação.

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