Category Archives: Critical Design

A sua própria história (quinta parte)


Quase um ano depois, continuo a série de textos dissecando um texto crítico de Rick Poynor sobre a exposição Forms of Inquiry. Esse pequeno ensaio crítico interessa-me pela sua premissa base, marcada a bold aquando da sua publicação: o design crítico só pode ficar a ganhar com a aceitação explícita e uma interrogação consciente da sua própria história.

Decidi escrever esta longa sequência de textos para reflectir sobre o que é isso da sua própria história. Como se pode impor uma história a quem a recusa? Pode-se escapar à história? De quem é a história? Quem a produz? Quem dela é alvo? O que é, no fundo, a história do design?

Nos últimos “episódios”, atacamos estas questões criticando o modo como a história do design gráfico assenta num princípio de continuidade. Este princípio permite unificar tendências e praticantes incompatíveis entre si num todo, aplanando as suas diferenças. Dois movimentos indiferentes ou até antagónicos podem ser reunidos numa mesma narrativa, contribuindo para a convicção de que o próprio design é uma unidade estável e segura. O apelo de Poynor a que os designers da Forms of Inquiry reconheçam «a sua própria história» é um exemplo de como essa continuidade não é natural precisando de ser imposta e vigiada. É disso que se trata quando Poynor impõe uma história, a sua, a designers que a recusam. 

Evidentemente, a história proposta constitui um possível cânone. Desde o seminal texto de Martha Scotford, “Is there a Canon of Graphic Design?” (1991), que é consensual a existência de um cânone dentro do design gráfico. Sabe-se que inclui e exclui praticantes, objectos e instituições e tende a representar um certo número de preconceitos – a preferência por homens, norte-americanos ou europeus do Norte. Porém, o que fica por dizer é que o cânone não propõe apenas um conjunto de nomes isolados num espaço abstracto mas ligações entre estes – afinidades, influências, filiações, etc. O que sucede no caso de Poynor é a imposição de uma ligação aos seus objectos, que a rejeitam.

Note-se que não há mal nenhum no crítico ou historiador estabelecerem ligações que escapam aos seus próprios protagonistas. Dentro da arte ou da literatura é prática comum e até central. Já há muito que  a crítica de arte ou literária depôs o artista ou autor como fonte primordial de autoridade sobre a sua obra. Quando Barthes propôs A Morte do Autor, era precisamente isto que propunha: a interpretação de um artista sobre a sua própria obra não tem a priori mais legitimidade do que a de qualquer leitor. O objectivo era atacar o autor enquanto argumento primordial e final de autoridade.

Em 1967, data da publicação do pequeno ensaio de Barthes, nada disto era particularmente novo. Desde finais do século XIX que se desenvolviam formas de crítica não assentes na figura do autor, assentes em análises formais, sociais, psicológicas, etc. O próprio Barthes ocupa parte do seu texto com uma breve história destas tendências, tanto do ponto de vista da crítica como da própria literatura, evocando artistas como Mallarmé ou os Surrealistas que se retiravam a si próprios da sua literatura em favor de processos mecânicos, automatismos.

São em parte estas ideias que permitem a um crítico ou historiador como Poynor propor ligações entre a Forms of Inquiry, a Emigre e o Designer as Author. O problema reside em impor aos designers da exposição a obrigação explícita de enunciarem essas ligações. Do mesmo modo que, de acordo com a teoria Barthesiana do autor, não há nada que obrigue um crítico a acatar a interpretação de um autor sobre a sua própria obra, o mesmo é válido no sentido oposto. Não há nada de inevitável na continuidade que Poynor propõe. Não deriva dos objectos, eventos, instituições e pessoas tratadas. É um artefacto narrativo criado pelo historiador. Sobre o mesmo material, é possível construir narrativas assentando em outras continuidades ou até rupturas.

Nas partes anteriores deste texto, tentei precisamente desmontar o próprio design enquanto continuidade disciplinar. Primeiro, mostrando que a história do design gráfico é a colagem de uma sucessão de outras histórias: da comunicação, do livro, da tipografia, etc. Depois, verificando que a ligação do design gráfico ao próprio design entendido como uma disciplina que congrega design de produto, moda, interiores, ou mesmo arquitectura, é, em termos históricos, bastante rara.

A necessidade de uma história assente em descontinuidades e rupturas já é reconhecida nas historiografia há bastante tempo – veja-se por exemplo Michel Foucault. A necessidade do uso de formatos históricos narrativos descontínuos ou não-lineares também já foi exposta por Hayden White. 

No campo da história e crítica de arte, estas questões são também centrais. George Kubler, no seu The Shape of Time:

«The narrative historian always has the privilege of deciding that continuity cuts better into certain lengths than into others. He never is required to defend his cut, because history cuts anywhere with equal ease, and a good story can begin anywhere the teller chooses.

For others who aim beyond narration the question is to find cleavages in history where a rut will separate different types of happening.»

A questão para Kubler como para outros historiadores da arte é fazer uma história que parta dos objectos e não das intenções, discursos ou biografias de quem os fez. O objectivo não é produzir uma narrativa com protagonistas, eventos, princípios, meios e fins, mas organizar os objectos de acordo com características formais.

A história do design gráfico, talvez por ser recente, tende a ignorar estes desenvolvimentos nas historiografias da arte e em geral. Deste modo, torna-se possível que um historiador ralhe a designers por não se conformem com a narrativa que propõe.

Ainda assim, há esperança. Nos últimos anos, tem havido um esforço acrescido de fazer histórias do design produzido por minorias historicamente oprimidas, procurando reflectir também sobre modos alternativos ou subalternos de design. Isso tem levado a recuperar o terreno no que diz respeito a uma reflexão sobre a natureza da história do design. Veja-se o modo como se define o conceito de história em Extra Bold, um guia para designers gráficos feminista, inclusivo, não-binário:

«History isn’t everything that ever happened. It is a selective set of narratives that have been recorded and passed on. Writing history is a process of making connections among people, events, and broad social changes. Official histories focus on a society’s most visible and dominant figures-kings, generals, business magnates, and famous artists, inventors, statesmen, and explorers. Today’s historians are studying the achievements of overlooked people and practices in order to create de colonized histories, queer histories, gendered histories, local histories, disability histories, an histories of popular culture.»

(continua)

re/Leituras

Com o fecho da faculdade por causa do Covid-19, tenho adiantado leituras (lista no fim do artigo).

Revisito o design de há uma década e meia. Penso no que será uma história específica do design, entendida não como uma história definida pelos objectos, instituições e praticantes do design, mas uma história com uma forma ou formas que se possam identificar.

Pergunto se há tendências, estilos ou movimentos dentro da história do design. Se é possível, por outras palavras, fazer uma história da história do design – tirando este post, ainda não escrevi nada.

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Forensic Architecture, ou uma guerra de imagens no limiar do design

Investigação sobre um assassinato por drone em Miranshah, no Waziristão do Norte.

A 12 de Fevereiro deste ano, o departamento de Homeland Security dos Estados Unidos da América classificou o arquitecto britânico de origem Israelita Eyal Weizman como um risco para a segurança do país. O seu visto de entrada foi revogado, impedindo-o de viajar para a Florida, onde estava a ser montada uma retrospectiva do colectivo que fundou, os Forensic Architecture. Quando pediu um novo visto na embaixada norte-americana em Londres, foi informado que um algoritmo o tinha identificado como ameaça. É provável que um cruzamento entre as viagens que fez, os locais que visitou e as pessoas e organizações com quem contactou tenha desencadeado a decisão.

Criados em 2010, como um núcleo de investigação da Goldsmiths (Universidade de Londres), os Forensic Architecture especializam-se na criação de técnicas experimentais para investigar crimes de guerra, em grande medida baseando-se em métodos e tecnologias de projecto oriundas da arquitectura. O colectivo inclui arquitectos, artistas, cineastas, jornalistas, cientistas e advogados.☀︎ Já abordaram casos relacionados com a crise de refugiados no Mediterrâneo, com a ocupação dos territórios Palestinianos, com a tortura de prisioneiros pelo regime de Bashar Al-Assad na Síria, com a investigação de crimes sobre populações civis no Guatemala. Em menos de uma década, o seu trabalho foi apresentado perante tribunais penais internacionais e na Assembleia Geral da ONU. Figurou também em exposições e bienais de arte, arquitectura e design, a mais notória sendo a Whitney Biennial de 2019, onde apresentaram provas de que a empresa Sierra Bullets, em parte propriedade de Warren Kanders, vice-presidente da bienal, tinha fornecido munições à Israeli Defense Force (IDF) usadas contra acções de protesto na faixa de Gaza, constituindo um provável crime de guerra.

Era este percurso que um algoritmo tinha classificado como ameaçador. As movimentações e a rede de contactos de um investigador é, evidentemente, bastante semelhante à de quem investiga – do lado da recolha bruta de dados, confundem-se vítimas, criminosos e investigadores. A própria condição de vítima é com frequência obscurecida de modo tático. A vítima civil de um acto de guerra ilegal é, por exemplo, apresentada pelo agressor como um terrorista. A revogação do visto de Weizman constitui um exemplo de obscurecimento tático, onde a própria decisão é remetida para a instância inumana representada pelo algoritmo, cujos critérios ou procedimento não são públicos.

Uma das investigações dos Forensic Architecture focou-se na campanha norte-americana de assassinatos de guerrilheiros Talibã através de drones na fronteira paquistanesa com o Afeganistão entre 2004 e 2014. Parte da ofensiva foi feita em segredo, recorrendo a mísseis concebidos com o objectivo de assassinar pessoas dentro de edifícios sem afectar a estrutura destes. Os projécteis entram pelo telhado e têm uma detonação temporizada de maneira a explodir num andar específico. O furo de entrada tem uma dimensão que passa despercebida nas imagens recolhidas por satélite – o que, associado a uma proibição de recolha de imagens na zona, dificulta a investigação destes ataques, necessariamente feita à distância, dadas as restrições de circulação.

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