A tendência já é visível há muito tempo, mas este ano atingiu um ponto alto: espreitei a minha nova turma de História do Design (2º ano, todos os alunos desse ano da licenciatura) e em 55 só havia 5 homens.
Parece mais do que evidente que o ensino deve (e já está a mudar) em função disso. Muita da bibliografia e historiografia mais interessante das últimas décadas tem sido feita por mulheres e tratando precisamente o design feito por mulheres.
O modo como se aborda a profissão também muda de acordo com isso. Faz sentido uma abordagem mais crítica ao cânone e ao chamado design de estúdio – a prática tida como dominante, mas que agora é apenas uma entre muitas.
Penso que uma das causas da subida da extrema-direita também reside num backlash em relação a mudanças deste tipo, que já acontecem desde há muito, mas que só há pouco se revelaram qualitativamente, mudando costumes, modos de estar e estruturas institucionais.
Não considero que a extrema-direita seja o cerne da questão, mas o seu indício mais agudo. A reação a estas mudanças é generalizada e transversal, desde a esquerda à direita, de novos a velhos. Manifesta-se na já velha discussão em torno do politicamente correto – que mais não é do que uma discussão em torno da recalibração dos costumes, protocolo e cortesia social, quando a estrutura da sociedade se altera.
East West Street – escrito por Philippe Sands, advogado de direitos humanos, sobre a origem dos termos genocídio e crimes contra a humanidade. Não é um relato seco mas entranhado na história das piores atrocidades do século XX contadas através da própria família do autor, vinda de Lviv, a mesma região de onde vieram os dois advogados que inventaram estes dois termos.
Investigative Aesthetics – Não há muitos livros sobre design ou áreas afins nesta lista. Os melhores que li têm o dedo de Eyal Weizman dos Forensic Architecture. O design tem tem tentado operar uma viragem política nos últimos anos, porém sempre a tatear e, no caso do design gráfico, sempre mais preocupada com questões de deontologia profissional do que com radicalmente refazer a disciplina. Mesmo os melhores esforços, como os de Ruben Pater, parecem-me sempre dispersos demais por um sem-número de anedotas que acabam por deixar intacto o «núcleo duro» da disciplina. Diria que o problema é tratar-se da política como essencialmente um conteúdo e não como algo que interrogue radicalmente o que é ser um designer. No último livro de Pater, Caps Lock, os títulos dos capítulos assumem o esquema familiar do «designer como…», sublinhando sempre a entender deste modo a centralidade do designer como uma constante dentro da disciplina. Parte do que gosto no trabalho de Weizman e dos Forensic Architecture é que refazem de modo radical todos os pressupostos do que é o design como disciplina projectar. Investigative Aesthetics demonstra na prática uma estética política que salva vidas, investiga crimes contra a humanidade, genocídios, crimes ambientais, etc. O que pedir mais?
Este ano decidi distanciar-me da fusão crescente do design gráfico com a tipografia concentrando-me na área neglicenciada da imagem, para isso foram essenciais The Civil Contract of Photography, de Ariella Azoulay e Seeing Through Race, de WJT Mitchell. Tende-se a negligenciar a imagem e a sua política quando ela assume cada vez mais importância como uma forma de discurso público. Em outras épocas a produção de imagens era uma área especializada. Agora, é algo generalizado, que qualquer um pode fazer.
Exhalation – Colecção de contos de Ted Chiang. Inclui o conto que deu origem ao filme Arrival, de Dennis Villeneuve. Tem um conto sobre uma cuidadora que dedica a sua vida a proteger e mais tarde a criar o protótipo de um software inteligente como se fosse seu filho. Ainda se assume sempre que as máquinas são mais duradouras que um ser humano, mas vivemos há muito numa época onde isto se inverteu. Duramos muito mais do que elas, do que os nossos computadores, do que o programa de escrita ou de desenho no qual aprendemos a desenhar, que o nosso primeiro jogo, que um site onde lemos um texto que nos comoveu. A rapidez com que software e hardware são descartados assume aqui um carácter de vida ou morte.
The Hard Crowd, de Rachel Kushner. Ensaios, alguns biográficos outros servindo de apoio a The Flamethrowers, o seu melhor livro. Mete tudo, desde motos e carros até a Autonomia italiana. Há quem a compare com Joan Didion, mas gosto mais de Kushner, talvez porque os temas me interessam mais.
Ice, de Anna Kavan – Como só decidi ler isto este ano é que não percebo. Um sonho drogado co arrepios numa intensidade sempre crescente sempre meio passo à frente de uma morte gelada.
Everyday Stalinism, da historiadora Sheila Fitzpatrick que resume a dado passo a vida quotidiana na União Soviética como uma mistura de orfanato, prisão e sopa dos pobres, e define o estalinismo como o cume mais extremo mas também o paradigma da vida soviética. Para além dos gulags, é, a todos os níveis, uma vida desigual, extrema e desesperada. É como viver sobre a carapaça de um imenso e imprevisível monstro.
Go Went Gone, de Jenny Erpenbeck – um grande livro sobre uma nova europa, contado sob o ponto de vista de um antigo alemão de Leste, um refugiado que perdeu a sua terra sem a ter abandonado fisicamente, que se redescobre cuidando de refugiados.
We Have Never Been Modern, de Bruno Latour – este foi ano em que deixei de ser pós-moderno. Latour deu uma grande ajuda.
The Nature of Conspiracy Theories, de Michael Butter, um bom estudo sobre um tema quente. Este é daqueles que apetece reler. Não se pode dizer que «gostei» mas iluminou de modo contra intuitivo um assunto sobre o qual se pensa saber o essencial. Outros do mesmo género são Confronting Anti-semitism on the Left, de Daniel Randall, uma perspectiva marxista clássica sobre a história do anti-semitismo à esquerda, e Denying the Obvious: Chemical Weapons and the Information War Over Syria. De Brian Whitaker, uma introdução e breve história das campanhas de desinformação da guerra Síria.
Sobre o Público ilustrado de ontem, só duas coisas.
Primeira: como muita gente apontou, os ilustradores não foram pagos. Já participei umas tantas vezes nesta iniciativa e é triste ver como isso continua a acontecer. Ainda se assume que ilustradores vão trabalhar a troco de visibilidade e ainda se fica à espera que agradeçam. Como é evidente, o Público também lucra com uma edição que, mesmo que marginalmente, vai ser comprada por colecionadores, curiosos e aficionados.
Segunda: quando participei, pensava que aquilo realmente iria acabar por provar que um jornal pode ficar a ganhar com a presença de mais ilustração. Mas isso não é uma lição que seja ou possa ser, ou queira ser aprendida. Os jornais pura e simplesmente não sabem o que fazer com a ilustração e muitos ilustradores não sabem o que fazer com um jornal.
Nesta última edição, percebe-se o carácter ad-hoc de quase todos os desenhos, encaixados conforme se pode numa base concebida com a fotografia em vista. Poucos faziam um bom par com as cores e tipografia densas. Muitos limitaram-se a ilustrar os temas dados com graçolas que pouco acrescentam – não vou dizer nomes, porque a coisa me parece sistémica. Já era assim no meu tempo e o problema é andar a põr-se por um dia um carro a gasolina a funcionar a electricidade. Vale pelo gesto ou nem isso.
Continua a ser um pouco triste ver bons ilustradores sujeitos a isto.
O resultado do facebook me ter apagado a conta do instagram sem nenhumas explicações para além da evocação dos nebulosos termos de serviço é que, mesmo que recupere a minha conta, nunca mais vou pôr conteúdo original que possa perder por lá. Ou, já agora, no Facebook . Arquivo quase tudo o que me importa. A maioria da minha escrita é feita para pensar. Considero-a como uma forma de esquiço que funciona melhor quando é público. Outra função da escrita que é para mim importante é a tentativa de esquecer, no sentido de processar um assunto «arrumando-o». Ou seja funciona como um registro mas por isso mesmo também é algo que deixo para trás. Não é necessariamente algo a que precise de voltar, basta ter por lá passado e ter dado aqueles passos, resolvido aquele puzzle.
O que gostava no instagram – já escrevo no pretérito – era a visualidade da coisa, ser uma performance acima de tudo visual, ou que comentava por escrito essa visualidade, onde as pessoas comunicam pela imagem ou, mais concretamente, por agregados mais ou menos pré-fabricados de imagem fotográfica, desenhada, textos, etiquetas, etc. Também havia nisso a ideia de registrar algo, performando-o e de certo modo pondo-o para trás das costas. A crítica, para mim, tem que ver com isso, com a experiência de processar experiências.
Como coleccionador de livros, ando sempre atrás de primeiras edições. Como autor, interessam-me mais as segundas.O meu livro «O Design que o Design Não Vê» está esgotado na editora. A Orfeu Negro vai lançar uma nova edição nas feiras do Livro. Aproveito para mais uma vez lhes agradecer pelo excelente trabalho e dedicação.
Na última parte, pusemos em causa a continuidade narrativa da história do design gráfico. Criticámos o modo como dá a ilusão que o próprio design gráfico é continuo, ocultando e minimizando descontinuidades e rupturas e promovendo uma concepção de design como uma constante ahistórica e universal. Rejeitando esta concepção, fica à vista um design bem mais frágil e dependente de circunstâncias históricas específicas. Deixa de estar sempre em todo o lado para se revelar raro.
E é tanto mais raro quanto se aproxima de um design total, que agrega arquitectura, design gráfico, de moda, produto, industrial, etc. Estas áreas disciplinares só com pouca frequência se encontraram durante as suas histórias excepto como vagos princípios. O centro do design foi um espaço quase sempre pouco habitado e frequentado. Um dos síntomas deste relativo vazio é a ausência do design da história do design gráfico. Só em momentos muito localizados ele é invocado – por exemplo, Arts & Crafts, Bauhaus, De Stijl, Ulm, Memphis.
Assim, quando Rick Poynor censura a exposição Forms of Inquiry por não admitir ligação à corrente do Critical Design, oriunda das áreas de produto e de interacção, está a assumir uma contiguidade entre as áreas que tradicionalmente foi ténue ao ponto da inexistência.
Note-se que não estamos a dizer que nunca houve contiguidades entre o design gráfico e o design em geral, apenas que são mais circunstanciais do que se pensa. Por exemplo, no ensino de design essa proximidade é comum, mas é sustentada mais pela escassez do que pelo princípio teórico. Numa só instituição de ensino, é comum o mesmo professor leccionar a cadeira de história do design a alunos de cursos de design gráfico, de produto, de moda, etc. Ironicamente, a universalidade disciplinar do design acaba por se sustentar concretamente na precariedade dos docentes, na secundarização da reflexão teórica em relação à prática nos cursos de design e nas dinâmicas internas das instituições.
Entretanto, essa precariedade só se acentuou, o que veio a contribuir para uma nova convergência dos diferentes ramos do design. A neoliberalização do ensino superior operou cortes sucessivos no financiamento das instituições, fazendo-as depender das propinas e de projectos de investigação. A dependência das propinas fez aumentar o número de alunos, e diminuição da duração dos cursos, em paralelo com a multiplicação da oferta de todo o tipo de cursos em todos os graus de ensino. Em alternativa, as propinas sobem até o ensino se tornar num privilégio de poucos. As contratações de pessoal docente diminuem ou precarizam-se, obrigando os professores a leccionarem mais disciplinas, em mais áreas e por vezes distribuídas por instituições distantes.
Um dos resultados do aumento de alunos por turma associado à escassez de docentes ou de espaços é um investimento maior num ensino teórico. Mesmo tarefas tradicionalmente práticas tendem a ser ensinadas num contexto de exposição dado o tamanho das turmas. Por outro lado, o acesso a financiamento por via de projectos de investigação tende também a recompensar a produção de investigação escrita. A avaliação de desempenho de docentes é outro incentivo à produção e apresentação de papers, mestrados e teses. Em consequência, torna-se bastante difícil ter professores que sejam primariamente profissionais de atelier. Neste momento, o docente de design típico em Portugal (e não só) torna-se cada vez mais um profissional do ensino e da investigação, que para além da pedagogia também precisa de um conhecimento operativo de organização de eventos e curadoria de exposições.
No mesmo período, também se assistiu à multiplicação das bienais de design e das instituições museológicas ligadas ao design. Dentro das indústrias culturais, impôs-se a figura do curador, desde os lugares de topo até às posições mais precárias. Também na cultura, a gestão de pessoas e obras ganhou protagonismo à simples produção, o que reflecte o neoliberalismo dominante – o curador é o equivalente estético do empreendedor, uma figura que na ausência de outros, se gere a si próprio. Dentro das artes, a curadoria tornar-se-ia também numa extensão da crítica, e no seu formato dominante. A crítica desaparece ainda mais da imprensa generalizada e os seus críticos tornam-se também curadores. O design seguiria pelo mesmo caminho, com exposições e bienais a tornarem-se nos locais mais comuns onde o crítico e o historiador são convidados a exercer.
As exposições, bienais e museus do design são um terreno favorável à convergência dos diferentes designs. Um evento que consiga mobilizar mais objectos, mais praticantes, de mais áreas disciplinares tem hipótese de mobilizar mais público e mais recursos. Dentro de museus, centros culturais ou escolas de artes, a pressão para mostrar trabalho leva a que tarefas administrativas subalternas se tornem num alvo de exposições, com catálogos, sites, cartazes e restante material de divulgação.
A Forms of Inquiry é o exemplo típico do contexto que acabamos de descrever. Teve a sua primeira exibição na Architectural Association School of Architecture e um dos seus curadores Zak Kyes é o director do Print Studio da escola, encarregue do design das publicações da instituição. A exposição, que põe um conjunto de designers gráficos de topo a reflectir sobre arquitectura enquadra-se perfeitamente dentro do tipo de exposição que mobiliza as ligações internas de uma instituição de ensino e do modo como esta reflecte dinâmicas económicas e ideológicas de maior escala – uma análise contextual que Poynor não fez. No contexto da crise económica que se começava a desenrolar na época, já começavam a ganhar tracção dentro do design análises críticas centradas em dinâmicas laborais, precariedade, etc.
Porém, a verdade é que a reflexão política do design, e em particular a sua economia e dinâmicas laborais, só muito raramente se debruça sobre áreas como o ensino, a escrita ou a curadoria. Estas áreas são consideradas secundárias em relação ao exercício do design num modelo profissional liberal (prestação de serviços).
Seria menos verosímil reprovar Poynor por não se ter debruçado na intersecção entre a curadoria e o design, que na altura já era visível mas pouco comentado criticamente, mesmo nas artes. Porém, em retrospectiva pode-se interpretar a designação «crítica» da exposição como enquadrada dentro da ascensão de uma crítica curatorial.
De qualquer modo, importa reter que o período de tempo onde se desenrolou esta polémica assistiu a reconfigurações dramáticas da área disciplinar do design, levando a uma reaproximação rara da história e da crítica dos diversos designs. Tal pode-se verificar na multiplicação de histórias gerais do design que incluem o design gráfico – como é o caso da World History of Design, de Victor Margolin ou The Story of Design: From the Paleolithic to the Present, de Charlotte e Peter Fiell.
Deixámos duas questões suspensas no último texto: O que faz da continuidade um mecanismo privilegiado para fazer sentido crítico de fenómenos distintos? Porquê usá-la – aliás, impô-la – na instância da crítica de Rick Poynor à exposição Forms of Inquiry?
Um dos tiques mais comuns da história do design gráfico é a continuidade. Chamo-lhe «tique» porque é uma escolha no modo como se escreve a história e não algo que esteja presente nos seus objectos. A partir do mesmo conjunto de documentos, objectos, eventos e personagens é possível contar histórias de continuidade, de ruptura ou que nem sequer obedecem a esta lógica – construídas através de fios narrativos paralelos, da dispersão de observações contraditórias que preservem a variedade dos eventos, que abandonam por completo a estrutura da cronologia preferindo outros tipos de exposição, etc.
Não é uma reflexão nova. Foucault argumentou a sua preferência por uma história das rupturas e dos limiares na introdução de A Arqueologia do Saber. Hayden White dedicou a sua carreira a examinar a escrita da história enquanto narrativa. Estes dois exemplos são desenvolvimentos teóricos que surgiram na década de 1960, antes da maioria das histórias do design gráfico – Muller Brockmann publicou a sua história da comunicação visual em 1971, Philip Meggs lançou a primeira edição da sua história do design gráfico em 1983, Richard Hollis em 1994.
A história de Meggs, a mais influente ainda hoje, assenta numa continuidade narrativa que segue desde a pré-história até quase ao presente. A sensação com que se fica da sua leitura é a de uma progressão cronológica, embora como o próprio autor sublinha, o efeito é conseguido através de uma exposição que não é estritamente cronológico:
«As dificuldades de uma estrutura puramente cronológica podem ser rapidamente entendidas considerando o trabalho de Paul Rand e Bradbury Thompson, ambos designers gráficos desde os anos 1930 aos 1990, um período de mais de meio século. Uma organização cronológica por décadas poderia inclui-los em até sete capítulos diferentes, com resultados confusos.» (p. xii)
Na terceira edição, a narrativa é estruturada em cinco secções cronológicas dividas em capítulos temáticos. Por exemplo, o quarto capítulo «The Modernist Era» contém as seguintes secções:
· The Genesis of Twentieth-Century Design
· The Influence of Modern Art; Pictorial Modernism
· A New Language of Form
· The Bauhaus and the new Typography
· The Modern Movement in America
A ordem embora não sendo estritamente cronológica sugere uma linha temporal, como se pode ver pela cronologia que abre o capítulo (na imagem). Este fio narrativo organiza por sua vez pequenas narrativas sobre as vidas de designers ou instituições. A estrutura não é linear, mas transmite continuidade narrativa cuja unidade básica são acima de tudo as vidas de designers individuais.
Porém, a unidade no modo como esta história é apresentada dá a entender a unidade do seu objecto, o design e os designers – projecta-se as características da narrativa nos objectos que lhe servem de base. A história de Meggs assume uma continuidade do design desde a pré-história até aos nossos dias, sustentando a convicção que sempre houve design e designers:
«Desde os tempos pré-históricos, as pessoas buscam maneiras de dar forma visual a ideias e conceitos, armazenar conhecimento sob a forma gráfica e trazer ordem e clareza às informações. No curso da história, essas necessidades foram atendidas por diversas pessoas, entre as quais escribas, impressores e artistas. Foi somente em 1922, quando o destacado designer de livros William Addison Dwiggins cunhou o termo graphic design para descrever as atividades de alguém que trazia ordem estrutural e forma visual à comunicação impressa, que uma nova profissão recebeu seu nome adequado.» (p. xiii)
O design gráfico é, portanto, antigo. Só o seu nome é recente. Meggs explica que o design vem de uma longa linhagem que inclui desde os «escribas Sumérios que inventaram a escrita» aos «tipógrafos e compositores» do século XV. É uma «tradição em larga media anónima» cujo «valor social e as realizações estéticas […] não foram devidamente reconhecidos» (ib. id.)
Assim, torna-se natural que a história do design gráfico seja uma revisão de outras, oriundas de outras disciplinas e tradições. Em versão resumida:
História do Design Gráfico = História da Comunicação Visual (35.000 até agora) + História da Escrita (10.000 até agora) + História do Livro + História da Tipografia (Século XV até agora) + História do Design Gráfico (± 1900 até agora)
Porém, há aqui um problema fundamental tão óbvio que é difícil vê-lo. (E de crucial importância para a discussão sobre a Forms of Inquiry – este parênteses sobre a forma narrativa da história do design não é um desvio, mas uma peça fundamental para sustentar o debate.) O problema é que para conseguir unir numa continuidade narrativa todas estas histórias distintas, todos estes praticantes, todas estas profissões, todos estes tempos, contextos geográficos e sociais, é preciso que da história do design gráfico esteja o mais ausente possível o próprio design.
Não o design gráfico mas o design em geral, aquele de que falam arquitectos, designers industriais, de moda, de moda ou de software. Em certas ocasiões, este design em geral é invocado. Por exemplo, no período entre o Arts & Crafts e a Bauhaus, mas antes e depois disso está ausente.
Há alguma ligação entre o modo como se cortavam caracteres no século XV e o modo como se projectavam edifícios, roupas ou mobiliário? Ou entre as formas orgânicas de Alvin Lustig e o design automóvel da mesma época? Entre a produção industrializada de Fat Faces e a igualmente industrializada produção de louça? Se formos pelas histórias gerias do design gráfico, não se sabe.
Por vezes, este design em geral ressurge. Por exemplo, quando se fala na influência do estúdio Memphis no design gráfico pós-moderno, mas desaparece rapidamente. Quando se chega ao fim da década de noventa, já deixou outra vez de existir.
Reemerge num contexto que nos é familiar, na crítica de Rick Poynor à Forms of Inquiry, quando acusa a exposição de ignorar os seus antecedentes, entre eles o Critical Design proposto pelos designers de produto e de interacção Fiona Raby e Anthony Dunne. Examinando, como acabamos de fazer, a história do design gráfico, as ligações entre o design gráfico e o design em geral, são muito raras, constituindo a excepção mais do que a regra.
Poderíamos argumentar que, na primeira década do século XXI, se está a dar uma convergência que não é de todo tradicional e que vale a pena examinar com uma atenção específica, não a assumindo como uma condição natural do design gráfico. Foi em parte para o fazer que me decidi a escrever sobre a recepção crítica da Forms of Inquiry.
A argumentação de Poynor assenta em dois pontos: a) uma exposição caracterizada como sendo critical design deve referir os seus precedentes, b) que são realmente, no caso da Forms of Inquiry, os propostos por Poynor.
Sobre a): não há nada que obrigue um crítico – não apenas um critical designer – a enunciar sempre (ou de todo) os seus precedentes. E se qualquer crítico de cinema, de arte ou literário fosse obrigado a ditar as suas filiações a cada vez que fazem um ensaio ou recensão? O mais comum é essa informação surgir de modo orgânico e indirecto da acção continuada do crítico. Artigo a artigo, ensaio a ensaio, exposição a exposição, é possível perceber os precedentes, o estilo, os critérios, o carácter do crítico. A crítica constrói o crítico.
No que diz respeito a b), a continuidade proposta por Poynor também tem bastantes fragilidades. A primeira, e menos óbvia delas, reside no próprio conceito de continuidade e a sua pertinência neste caso. O que faz da continuidade um mecanismo privilegiado para fazer sentido crítico de fenómenos distintos? Porquê usá-la – aliás, impô-la – nesta instância?
Pode dar-se simplesmente o caso de Poynor estar a projectar a sua própria continuidade enquanto crítico num objecto que não a suporta – ou seja, a história de que Poynor fala pode ser apenas a sua própria. Enquanto crítico e historiador central dentro do design gráfico, Poynor tem um papel privilegiado na enunciação e tendência de padrões e afinidades entre praticantes, objectos, instituições ou eventos. Contribui com isso para a criação de um cânone que não se reduz a uma lista mas codifica também as relações entre os seus elementos – quem influência quem, quem tem similitudes formais com quem, quem frequentou as mesmas instituições. Ao enunciar no seu texto as relações institucionais, pessoais e conceptuais entre os designers da Forms of Inquiry e os seus supostos antecedentes, Poynor está assim a propor um cânone.
Nada disto é incomum, nem sequer a imposição de cânones sobre praticantes que neles não se revêem. O que torna este caso interessante é apenas a clareza do processo, a convicção forçosa do crítico que exige aos seus objectos que admitam o cânone que propõe. Pode-se observar o cânone a funcionar a olho nu.
Comecei o monumentânea mais como uma revista (artigos longos periódicos) do que um blogue. Tinha como projecto escrever ensaios longos sobre história recente do design mas bem depressa me afundei em investigação. Para ajudar a sintetizar as ideias, decidi-me a tentar fazer textos curtos – estilo twitter ou Facebook – que me forcem a resumir assuntos complicados em poucas linhas. Mais tarde poderei juntá-los e desenvolvê-los.
1. O Critical Design, movimento iniciado pelos designers industriais Fiona Raby e Anthony Dunne (1999) e hoje representado por um número alargado de praticantes como por exemplo Francisco Laranjo e a sua revista Modes of Criticism (2015); 2. Aquilo que já foi designado por Subterranean Modernism, tendência ligada à edição, curadoria e pedagogia experimentais. Teve como publicação mais importante a Dot Dot Dot (2000 – 2010). A exposição Forms of Inquiry representaria esta tendência; 3. A revista Emigre, publicada entre 1984 e 2005. Um dos veículos históricos do Pós Modernismo no design de comunicação, tanto do ponto de vista gráfico como dos ensaios que publicou e das polémicas que iniciou; 4. A discussão em torno do Designer as Author, que marcou a segunda metade da década de noventa e começos de 2000.
Usando a exposição como fulcro, Poynor tenta articular numa narrativa histórica todas estas correntes. Os designers expostos seriam um movimento coerente, filiado no Critical Design, e descendendo da Emigre e do Designer as Author.
Porém, nenhum destes antecedentes era referido na exposição ou no seu catálogo, o que motivou uma dura crítica por parte de Poynor. Embora reconhecesse que a omissão poderia ser ditada pelo desejo de uma nova geração estabelecer a sua própria identidade, sentenciou que o: «Critical design só podia ficar a ganhar com a aceitação explícita e o questionamento consciente da sua própria história».
A acusação foi apenas o primeiro tiro da polémica que se seguiu. Os comissários Kyes e Owens responderam, contrapondo que «as obras expostas e os ensaios do catálogo reconhecem os seus predecessores; só não são os [que Poynor] endossa». Manifestaram-se surpreendidos que o crítico os tenha tomado por «um grupo definido de designers operando sob uma só bandeira formal e ideológica.» Também rejeitavam pertencer ao Critical Design e negavam a influência da Emigre. As discussões em torno do Designer as Author limitavam-se, segundo eles, a um exemplo das «polémicas insulares que caracterizam muito do design» da década de noventa. Stuart Bailey, um dos participantes, respondeu numa carta aberta publicada em 2010 no último número da revista Dot Dot Dot. Também ele manifestava a sua distância em relação ao critical design, à Emigre e aos debates do «designer como autor». Todos eles negavam, em suma, que aquela fosse «a sua própria história».
«A sua própria história» – esta noção intrigou-me. Como podia ser a «sua» história, se a recusavam? É certo que uma das responsabilidades do crítico e do historiador é estabelecer padrões históricos que, na maioria das vezes, passam desapercebidos aos seus protagonistas. Porém, neste caso o crítico/historiador estava a exigir aos seus alvos que admitissem como sua uma história que claramente rejeitavam. O que dava a Poynor a certeza que aquela era realmente a história dos designers da Forms of Inquiry?
E a estas juntava-se outra interrogação: Qual a natureza da história do design? Quem a produz? A quem pertence? Pode ser recusada?
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