Nos velhos tempos, o que eu fazia nas redes era escrever sobre design. Ainda é o meu interesse extra-net.
As duas áreas que mais me interessam são o movimento Arts & Crafts e as questões relacionadas com a política da imagem.
Não são exactamente assuntos populares dentro da disciplina. William Morris e os seus amigos são considerados bem intencionados mas falhados. Quanto à imagem, o design gráfico virou-se quase totalmente para a tipografia.
Porém, a política do movimento Arts & Crafts era bastante complexa. Os textos de figuras como Walter Crane têm sido uma janela para a génese do design como disciplina e a sua ligação ao imperialismo inglês, e em particular ao racismo.
Do lado da imagem, é curioso que neste momento a imagem é talvez o objecto de design mais acabado, mais trabalhado e mais generalizado. No entanto, a disciplina do design vira-lhe as costas neste momento crucial.
No seu texto mais famoso, Beatrice Warde (1900 – 1969) escreveu que a tipografia deveria ser como um cálice de cristal: para que se possa apreciar o vinho, o copo deve ser neutro e transparente.
The Cristal Goblet foi publicado em 1930. É talvez o texto mais influente escrito por uma mulher dentro da área do design gráfico.
Warde falava de letras sobre a página, mas propunha um código moral implícito. O designer deveria ser como um cálice de cristal – também neutro e transparente.
O ensaio foi publicado sob o nome de um homem, Paul Beaujon. Também é isso que significa ser neutro e transparente: ser como um homem, branco, cis e hetero.
George Lois morreu há dois dias. Foi um dos mais icónicos art directors do século XX. A sua marca registrada foram as elaboradas encenações fotográficas que concebeu para as capas da Esquire. Pareciam montagens ou colagens mas, na sua maioria, eram cenas onde as celebridades participavam de bom grado. Mohammad Ali, muçulmano, sujeitou-se a ser caracterizado como São Sebastião, figura cristã, com setas e tudo. Ali e Lois tinham uma relação simbiótica que se desenvolveu por inúmeras capas.
Já não sou o único escritor do design publicado pela Orfeu Negro. Aqui, e só aqui, cheguei antes do Daciano Da Costa.
Resisti aos velhos livros do Daciano da Costa porque não apreciava o seu design. Não era só das fontes e da composição que eu não gostava mas do design do próprio objecto. Tantas vezes se esquece aquela parte do design que consiste em arranjar a matéria de um modo que dá prazer usá-la.
Os livros do Daciano têm finalmente um bom design (do Rui Silva)
Outro pormenor: nunca tinha dado conta que Daciano falava a dada altura do Sr. Gaudêncio. Desde que o li pela primeira vez casei-me, tomei o apelido da minha esposa. Sou agora o Sr. Gaudêncio.
Chocou-me a morte de professor Francisco Laranjo. Não éramos próximos. Como colega era afável e conciliador ao extremo.
Quando foi director das Belas Artes mudou o modo como a escola se relacionava com o seu design. Até aí, quando a instituição precisava de um poster ou de uma identidade gráfica contratava por concurso um atelier de design. Era um processo longo e caro, quase sempre acima dos meios da escola. O mais comum era recorrer-se ao trabalho gratuito dos alunos.
A equipa directiva de Francisco Laranjo contratou pela primeira vez uma designer a tempo inteiro como funcionária interna da escola. Era originalmente um cargo mal remunerado, pouco acima do salário mínimo. O próprio Laranjo se empenhou que fosse recompensado de modo digno. A primeira pessoa a ocupar esse cargo foi a ex-aluna Márcia Novais. O seu trabalho foi exemplar, tendo sido premiado inúmeras vezes ao mais alto nível.
Escrevi muitas vezes sobre esta transição para o designer como funcionário – um fenómeno rico e, na minha opinião, pouco abordado. Embora muitas vezes a «designer da escola» fosse tratada como uma mera executora, o seu melhor trabalho era autónomo, funcionando paredes meias com a edição e a curadoria. A direcção do Professor Laranjo possibilitou e apoiou essa autonomia. Não termino sem referir a professora Graciela Sousa, então vice-directora, uma figura central nos processos que referi.
«Forget photography» tem uma capa engenhosa para um livro que está a ser uma grande leitura.1
Andrew Dewdney acredita que o paradigma da fotografia já não explica o que ele chama a imagem em rede. A fotografia também já não consegue explicar o seu papel central na construção do capitalismo, da supremacia branca e do patriarcado.
Dewdney propõe, em suma, que se esqueça a fotografia. Não quer apagar a história da fotografia, mas desnaturalizar a fotografia como um princípio crítico e histórico. Procura paradigmas alternativos que consigam lidar com a imagem em rede – imagens geradas por computadores, imagens feitas para serem usadas por computadores, imagens produzidas e usadas por pessoas mas cujos usos não são estéticos, etc.
Um dos argumentos centrais do livro é que a fotografia morreu. Sobrevive enquanto morto-vivo. Limita a nossa capacidade para compreender o presente, obrigando-nos a olhá-lo através das lentes da fotografia e da arte. Na capa, os dois retângulos tagados como «fruta» e «tigela» são uma natureza-morta vista por um sistema de inteligência artificial, um tema clássico da história de arte recriado por uma visão inumana. A imagem ilustra perfeitamente esse argumento.
Mais ainda: leva a questões sobre design que ultrapassam o âmbito do livro.
Ainda não acabei «Forget photography». Leio-o em versão ebook. Para ilustrar este artigo, procurei na internet a fotografia de um exemplar físico. No motor de busca, quase todos os resultados eram imagens digitais. Rectângulos sem espessura ou indício de matéria. Um único resultado, o que reproduzo no começo deste texto, apresenta o livro como objecto físico. Porém, a uniformidade do sombreado, o brilho da dobra da lombada, apontam para uma simulação. É uma imagem e não uma fotografia.
Há serviços na internet que geram automaticamente a imagem de um livro físico a partir de uma capa. Os alunos usam-nos para perceberem como ficarão as publicações que concebem nas minhas aulas. A maioria do design gráfico é produzida com o auxílio de todo o tipo de algoritmos. Programas como o InDesign ou o Illustrator automatizam desde o alinhamento óptico até à gestão dos cortes de linha nos parágrafos.
O design é em, em larga medida, produzido num meio onde humano e máquina se fundem. A imagem da capa de «Forget Photography» é realmente o output de um sistema de AI? É um objecto de design sem designer? Ou um designer a simular o design de uma máquina? É difícil averiguar sem ler os créditos.
O design enquanto disciplina também é assolado pelas dúvidas enunciadas em «Forget Photography». Tornou-se um lugar comum lamentar a profusão de usos não-regulados da palavra «design». Todos os meses leio ou ouço um designer a lamentar o excesso de design. Esta abundância assemelha-se à profusão de imagens que se escapam cada vez mais ao paradigma da fotografia. Tem as mesmas causas.
É raro enunciar-se as dúvidas disciplinares do design do mesmo modo que Dewdney enuncia as da fotografia. Aqui fica a tentativa: estando o design quase automatizado e estando em todo o lado de formas radicalmente novas, faz sentido continuar a chamar-lhe «design»? Pode o design enquanto disciplina explicar ou até simplesmente enumerar esta abundância de designs?
Acredito que a resposta a ambas as perguntas pode ser não. Porém, é mais difícil imaginar paradigmas alternativos ao design do que à fotografia. No design não podemos recorrer sequer a um conceito alternativo e mais abrangente como a imagem. «Design» tanto nomeia uma área disciplinar profissionalizada como, pelo menos na língua inglesa, o acto mais geral de projectar ou conceber.
Na língua portuguesa, o nome «design» é uma importação recente. Não tem sequer um equivalente verbal. É um objecto e um sujeito mas não uma acção. A disciplina é também relativamente nova. Foi difícil implantá-la. Houve inúmeros actos de resistência – dos tipógrafos que viam a sua actividade ameaçada, de quem se recusa a usar uma palavra inglesa, etc. A ideia que o design é uma actividade eterna e inerentemente humana ignora essas resistências. Sob o pretexto de expandir a história do design, rupturas e transições difíceis são esquecidas. Apagando-as, não será possível alcançar o objectivo de descolonizar o design ou de expor as suas raízes capitalistas.
É essencial esquecer, nem que seja por um momento, o design. Ver todo um conjunto de práticas não como potenciais apêndices do design mas como paradigmas alternativos, com a sua própria coerência, os seus métodos, as suas políticas, e as suas identidades.
Esquecer o design. Perguntar o que seria o mundo ou o presente sem design. O design gráfico enquanto disciplina tem seguido o caminho contrário. Enquanto os designers se queixam do uso não-regulado da palavra design, aplicam-na a artefactos cada vez mais remotos. Tudo se torna design – um livro iluminado, um papiro, a ornamentação numa lança pré-histórica.
Em nome da unidade disciplinar, alisam-se descontinuidades e rupturas. Uma delas, dissimulada à vista de todos, separa a imagem do design gráfico. Este tem-se tornado num quase sinónimo de tipografia, e, mais ainda, de texto. A imagem só é aceite como um complemento do texto. Ou então sob a forma de imagem corporativa – e «logo», no seu sentido original, significa «palavra».
Talvez o design já não queira ter nada que ver com a imagem. Ocupa-se acima de tudo com a visualidade do texto. Um objecto que não tenha texto – um poster, uma publicação – é frequentemente recusado enquanto design.
Exemplo de layout como foto-montagem. As imagens eram recolhidas consoante o papel a desempenhar na página. Podiam ser empregues como módulos reutilizáveis.
Houve épocas em que se assumia que o designer era também um produtor de imagens. Laszlo Moholy-Nagy propunha o futuro do design como a fusão de tipografia com fotografia, a que chamava Typohoto. Letras e imagens seriam pixels sobre a página. As revistas e livros de design de meados do século XX estavam cheias de reflexões sobre a imagem. Desde Moholy-Nagy a Josef Müller Brockmann passando por Herbert Spencer, todos produziram reflexões sobre a imagem, não apenas no sentido de um conteúdo mas como algo que é produzido e trabalhado pelos designers.
Uma das principais diferenças para com a arte é a preocupação central do design para com a função. O abandono da imagem assinala uma desistência por parte do design de pensar as funções da imagem. Uma das consequências é o tratamento da imagem como um conteúdo exterior e não algo cujas funções primárias podem ser decididas pelo design.
Durante o modernismo, existiu um design da imagem. Nas décadas de 1920 e 1930, algumas revistas de actualidade eram impressas usando rotogravura, uma técnica onde a totalidade da página, incluindo o texto, era produzida usando processos fotográficos. Estas publicações eram planeadas como uma montagem, sendo as fotos tiradas a pensar na sua função final. O design ditava à partida o enquadramento, o ângulo, a encenação e até o recorte da imagem. A fotografia não era um conteúdo. Era parte integrante do processo do design.
Hoje, o mais comum é a imagem a ser tratada pelo designer como mais um rectângulo no meio das caixas de texto. Há uma divisão de tarefas: o design cuida da visualidade do texto e dos elementos que interagem com este; a fotografia (ou a ilustração) tratam da imagem.
Dewdney critica este fechamento disciplinar. A solução, esquecer a fotografia, possibilita esquecer o design. Tal não significa apagá-lo mas tomar consciência dele enquanto um objecto sujeito à história e não uma constante. A história do design deveria ser também a história de como mudou radicalmente enquanto conceito. Há um esforço para fazer histórias do design que se preocupam em apresentar o design como dependente de distintos contextos técnicos, sociais e formais. Porém, a ideia do design como uma constante implica que, destas condicionantes, surge sempre o mesmo design.
Notas:
1. Estou a lê-lo porque veio referenciado na Revue Faire #41, cujo tem é «Forget (Fashion) Photography»
W.A. Dwiggins usou a expressão design gráfico pela primeira vez no texto «New Kind of Printing Calls for New Design», publicado em Agosto de 1922 numa secção especial do Boston Evening Transcript dedicada às artes gráficas.
Fez este agosto cem anos. Esperei em vão pelas celebrações. Como disciplina, o design adora este tipo de efeméride. As festas por ocasião dos cem anos da Bauhaus em 2019 incluíram livros, filmes, exposições e conferências. No caso de Dwiggins, nada. Por quê?
Acredito que se deixou passar a efeméride porque se acredita que Dwiggins se limitou a nomear algo que já existia. Existe uma tendência dentro do design de acreditar que este existe desde sempre. Quando se acredita que o design já existe desde a idade da pedra, é paradoxal celebrar a criação de um nome.
Nomear não se limita a etiquetar uma realidade pré-existente. Pode ser um acto de ruptura. Quando Dwiggins escreveu que um novo tipo de impressão pedia um novo design, enunciava uma quebra com o passado. Propunha um «novo design».
Dwiggins propôs o design gráfico como algo novo e não apenas como uma nova designação.
É curioso que se diga sempre que Dwiggins «cunhou» o nome. O verbo sublinha um lado pessoal, popular. Porém, dentro do texto o uso era estratégico. Propunha uma nova actividade com um novo nome para modernizar a impressão. A expressão que criou foi de tal maneira adequada que viria a nomear uma área disciplinar durante décadas.
Queixava-me hoje de que não se falava de design no contexto da guerra da Rússia contra a Ucrânia. Mais valia ter ficado calado. A propósito do logo da empresa que vai substuir o MacDonald’s na Rússia, parece que o mundo do design acordou. Infelizmente, sem muito para dizer.
Steven Heller cai numa análise estarrecedoramente superficial, que mostra bem os limite da crítica e da história do design clássica. Para além de uma interpretação iconográfica básica (é um hambúrguer e duas batatas), enceta a habitual busca dentro do cânone de precedentes (o logo da Warner de Saul Bass). Como tem a ver com a Rússia, vai-se buscar as vanguardas.
Mas, pelos exemplos mostrados, o que sustenta a invocação de El Lissitsly é o facto de ambos usarem círculos. A articulação formal é totalmente distinta. Enquanto as vanguardas usavam contrastes extremos, um «desenho mais agudo» e assentos de cor em tipografia negra, este logo é sobretudo formas arredondadas e brandas, num arranjo cromático sem grande tensão ou contraste.
A semelhança com o logo da Warner só ilustra a pobreza relativa do design corporativa, reduzida a uma paleta mínima de combinações entre caracteres e formas geométricas. Entretanto, já se descobriu que é semelhante ao logo de uma empresa portuguesa de rações para gado. Pois claro que sim.
E até se podia ir mais longe. O nome da hambúrgueria russa tem sido traduzido por «Saboroso e pronto», mas mais literalmente seria «Saboroso. Ponto» – o que faz lembrar qualquer coisa, não faz? E mais uma vez ilustra a penúria de toda este vocabulário. As mesmas frases, os mesmos slogans. Mas o objectivo é mesmo esse: mostrar que nada mudou. E Heller como seria de esperar até parece preferir a nova versão, que se escapa à nostalgia do velho logo dos Arcos. Fico com a sensação que, se pudesse, apoiaria um rebranding da Macdonald’s para se tornar mais empresarial.
É tudo muito pobre. Se houvesse uma preocupação mínima de ver o significado em russo, percebia-se que o ponto é simplesmente um ponto final. E também não se diria que os russos deixariam de comer hamburglars, que é um nome específico ao franchise americano. Seria mais interessante saber quais os menus específicos do franchise russo, como era o velho design, etc. Mas fica-se pela ideia superficial do Macdonald’s como uma coisa americana, tal como a história do design e a sua crítica.
Quais as tendências do design e da publicidade na Rússia? Quais os seus protagonistas? Os seus antecedentes? Que letra é que o logo representa?Adorava saber.
Tem-me sido muito difícil pensar nas implicações da guerra no design gráfico. Não tenho lido textos ou intervenções sobre o assunto. Antes de escrever este texto, fui espreitar o Aiga Eye on Design e o Design Observer e não dei com nada. O mesmo na Futuress. Não sei se me escapou alguma coisa.
Em notícias generalistas, dei com uma referência a designers russos que tinham perdido o acesso ao software da adobe por causa do boicote. Na semana passada, alguém postou a foto das alterações feita pelos conquistadores russos às letras tridimensionais que identifica a cidade de Mariupol. O azul e amarelo ucranianos foram substituídos pelo azul, branco e vermelho da federação russa. A grafia passou a representar a pronúncia russófona.
Tanto quanto reparei, ninguém na comunidade de designers comentou qualquer um destes acontecimentos.
Este lettering tridimensional tornou-se num lugar comum da identidade gráfica urbana no século XXI. São fáceis de planear e fazer. Pelo seu aspecto gráfico cartoonesco, um pouco digital, funcionam como um tag gigantesca, encastrado na paisagem, pronto a usar por qualquer instagramer ou tiktoker.
Já se comentou muitas vezes como esta forma de branding, desproblematiza as cidades, procurando torná-las em puras unidades de consumo e de capital, escondendo debaixo de uma unidade gráfica um sem número de rupturas, marginalizações, exclusões, etc. O Porto é um grande exemplo dessas dinâmicas.
O rebranding de Mariupol mostra como estes processos e formatos continuam a ser usados numa situação de guerra de conquista. O apagamento torna-se aqui uma representação do apagamento genocida da população ucraniana em nome do irredentismo chauvinista russo.
Porque há tão pouca gente dentro do design a falar disto?
Nas últimas duas décadas, o design gráfico tem conduzido todo o tipo de esforços para se tornar crítico, político ou social. Alcançaram-se alguns objectivos nesse sentido, em particular nas questões da inclusão de minorias e da expansão da história e da prática do design para além das geografias e identidades que tradicionalmente a dominavam.
Porém, muito do esforço político e social da área traduziu-se apenas em aplicar um verniz empresarial a causas sociais, produzindo logotipos que possam atrair investidores privados. Essas causas vão desde acções de caridade até ao branding de cidades.
Em termos políticos, uma das perguntas recorrentes tem sido como conjugar uma prática crítica do design com o trabalho regular de estúdio ou de freelancer. Como se consegue pagar as contas sem sacrificar a intervenção social e política?
Quase toda a discussão política no design é, em suma, sobre potenciais clientes e sobre ética profissional. Talvez por isso seja tão difícil falar sobre design em situações de guerra, de genocídio, de ocupação militar.
Penso que seria necessária uma reflexão sobre design que ultrapassasse os interesses profissionais dos designers, que fosse além da política como conteúdo, e do design como serviço privado.
Há exemplos desse tipo de prática em outras áreas, por parte de iniciativas como os Forensic Architecture ou os Bellingcat. Na minha opinião, estas são o tipo de práticas críticas com a qual os designers gráficos sonham mas que não conseguem alcançar por estarem presos a um visão professionalizante da disciplina. Nestas práticas, o que se faz encenar novos modos de visão críticas sobre imagens, sobre as redes sociais, sobre algoritmos.
As formas profissionais são reinventadas para acomodar estas novas visões e não o oposto. Deixa-se de produzir imagens e formatos empresariais para encenar um design investigativo, tanto de ferramentas, como de métodos, como enquadramentos com que lidar com problemas políticos novos e extremos.
Quase um ano depois, continuo a série de textos dissecando um texto crítico de Rick Poynor sobre a exposição Forms of Inquiry. Esse pequeno ensaio crítico interessa-me pela sua premissa base, marcada a bold aquando da sua publicação: o design crítico só pode ficar a ganhar com a aceitação explícita e uma interrogação consciente da sua própria história.
Decidi escrever esta longa sequência de textos para reflectir sobre o que é isso da sua própria história. Como se pode impor uma história a quem a recusa? Pode-se escapar à história? De quem é a história? Quem a produz? Quem dela é alvo? O que é, no fundo, a história do design?
Nos últimos “episódios”, atacamos estas questões criticando o modo como a história do design gráfico assenta num princípio de continuidade. Este princípio permite unificar tendências e praticantes incompatíveis entre si num todo, aplanando as suas diferenças. Dois movimentos indiferentes ou até antagónicos podem ser reunidos numa mesma narrativa, contribuindo para a convicção de que o próprio design é uma unidade estável e segura. O apelo de Poynor a que os designers da Forms of Inquiry reconheçam «a sua própria história» é um exemplo de como essa continuidade não é natural precisando de ser imposta e vigiada. É disso que se trata quando Poynor impõe uma história, a sua, a designers que a recusam.
Evidentemente, a história proposta constitui um possível cânone. Desde o seminal texto de Martha Scotford, “Is there a Canon of Graphic Design?” (1991), que é consensual a existência de um cânone dentro do design gráfico. Sabe-se que inclui e exclui praticantes, objectos e instituições e tende a representar um certo número de preconceitos – a preferência por homens, norte-americanos ou europeus do Norte. Porém, o que fica por dizer é que o cânone não propõe apenas um conjunto de nomes isolados num espaço abstracto mas ligações entre estes – afinidades, influências, filiações, etc. O que sucede no caso de Poynor é a imposição de uma ligação aos seus objectos, que a rejeitam.
Note-se que não há mal nenhum no crítico ou historiador estabelecerem ligações que escapam aos seus próprios protagonistas. Dentro da arte ou da literatura é prática comum e até central. Já há muito que a crítica de arte ou literária depôs o artista ou autor como fonte primordial de autoridade sobre a sua obra. Quando Barthes propôs A Morte do Autor, era precisamente isto que propunha: a interpretação de um artista sobre a sua própria obra não tem a priori mais legitimidade do que a de qualquer leitor. O objectivo era atacar o autor enquanto argumento primordial e final de autoridade.
Em 1967, data da publicação do pequeno ensaio de Barthes, nada disto era particularmente novo. Desde finais do século XIX que se desenvolviam formas de crítica não assentes na figura do autor, assentes em análises formais, sociais, psicológicas, etc. O próprio Barthes ocupa parte do seu texto com uma breve história destas tendências, tanto do ponto de vista da crítica como da própria literatura, evocando artistas como Mallarmé ou os Surrealistas que se retiravam a si próprios da sua literatura em favor de processos mecânicos, automatismos.
São em parte estas ideias que permitem a um crítico ou historiador como Poynor propor ligações entre a Forms of Inquiry, a Emigre e o Designer as Author. O problema reside em impor aos designers da exposição a obrigação explícita de enunciarem essas ligações. Do mesmo modo que, de acordo com a teoria Barthesiana do autor, não há nada que obrigue um crítico a acatar a interpretação de um autor sobre a sua própria obra, o mesmo é válido no sentido oposto. Não há nada de inevitável na continuidade que Poynor propõe. Não deriva dos objectos, eventos, instituições e pessoas tratadas. É um artefacto narrativo criado pelo historiador. Sobre o mesmo material, é possível construir narrativas assentando em outras continuidades ou até rupturas.
Nas partes anteriores deste texto, tentei precisamente desmontar o próprio design enquanto continuidade disciplinar. Primeiro, mostrando que a história do design gráfico é a colagem de uma sucessão de outras histórias: da comunicação, do livro, da tipografia, etc. Depois, verificando que a ligação do design gráfico ao próprio design entendido como uma disciplina que congrega design de produto, moda, interiores, ou mesmo arquitectura, é, em termos históricos, bastante rara.
A necessidade de uma história assente em descontinuidades e rupturas já é reconhecida nas historiografia há bastante tempo – veja-se por exemplo Michel Foucault. A necessidade do uso de formatos históricos narrativos descontínuos ou não-lineares também já foi exposta por Hayden White.
No campo da história e crítica de arte, estas questões são também centrais. George Kubler, no seu The Shape of Time:
«The narrative historian always has the privilege of deciding that continuity cuts better into certain lengths than into others. He never is required to defend his cut, because history cuts anywhere with equal ease, and a good story can begin anywhere the teller chooses.
For others who aim beyond narration the question is to find cleavages in history where a rut will separate different types of happening.»
A questão para Kubler como para outros historiadores da arte é fazer uma história que parta dos objectos e não das intenções, discursos ou biografias de quem os fez. O objectivo não é produzir uma narrativa com protagonistas, eventos, princípios, meios e fins, mas organizar os objectos de acordo com características formais.
A história do design gráfico, talvez por ser recente, tende a ignorar estes desenvolvimentos nas historiografias da arte e em geral. Deste modo, torna-se possível que um historiador ralhe a designers por não se conformem com a narrativa que propõe.
Ainda assim, há esperança. Nos últimos anos, tem havido um esforço acrescido de fazer histórias do design produzido por minorias historicamente oprimidas, procurando reflectir também sobre modos alternativos ou subalternos de design. Isso tem levado a recuperar o terreno no que diz respeito a uma reflexão sobre a natureza da história do design. Veja-se o modo como se define o conceito de história em Extra Bold, um guia para designers gráficos feminista, inclusivo, não-binário:
«History isn’t everything that ever happened. It is a selective set of narratives that have been recorded and passed on. Writing history is a process of making connections among people, events, and broad social changes. Official histories focus on a society’s most visible and dominant figures-kings, generals, business magnates, and famous artists, inventors, statesmen, and explorers. Today’s historians are studying the achievements of overlooked people and practices in order to create de colonized histories, queer histories, gendered histories, local histories, disability histories, an histories of popular culture.»
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