Monthly Archives: Novembro 2022

A designer como cálice de cristal

No seu texto mais famoso, Beatrice Warde (1900 – 1969) escreveu que a tipografia deveria ser como um cálice de cristal: para que se possa apreciar o vinho, o copo deve ser neutro e transparente.

The Cristal Goblet foi publicado em 1930. É talvez o texto mais influente escrito por uma mulher dentro da área do design gráfico.

Warde falava de letras sobre a página, mas propunha um código moral implícito. O designer deveria ser como um cálice de cristal – também neutro e transparente.

O ensaio foi publicado sob o nome de um homem, Paul Beaujon. Também é isso que significa ser neutro e transparente: ser como um homem, branco, cis e hetero.

George Lois (1931 – 2022)

George Lois morreu há dois dias. Foi um dos mais icónicos art directors do século XX. A sua marca registrada foram as elaboradas encenações fotográficas que concebeu para as capas da Esquire. Pareciam montagens ou colagens mas, na sua maioria, eram cenas onde as celebridades participavam de bom grado. Mohammad Ali, muçulmano, sujeitou-se a ser caracterizado como São Sebastião, figura cristã, com setas e tudo. Ali e Lois tinham uma relação simbiótica que se desenvolveu por inúmeras capas.

O novo design do Sr. Daciano

Já não sou o único escritor do design publicado pela Orfeu Negro. Aqui, e só aqui, cheguei antes do Daciano Da Costa.

Resisti aos velhos livros do Daciano da Costa porque não apreciava o seu design. Não era só das fontes e da composição que eu não gostava mas do design do próprio objecto. Tantas vezes se esquece aquela parte do design que consiste em arranjar a matéria de um modo que dá prazer usá-la.

Os livros do Daciano têm finalmente um bom design (do Rui Silva)

Outro pormenor: nunca tinha dado conta que Daciano falava a dada altura do Sr. Gaudêncio. Desde que o li pela primeira vez casei-me, tomei o apelido da minha esposa. Sou agora o Sr. Gaudêncio.

Professor Francisco Laranjo

Chocou-me a morte de professor Francisco Laranjo. Não éramos próximos. Como colega era afável e conciliador ao extremo.

Quando foi director das Belas Artes mudou o modo como a escola se relacionava com o seu design. Até aí, quando a instituição precisava de um poster ou de uma identidade gráfica contratava por concurso um atelier de design. Era um processo longo e caro, quase sempre acima dos meios da escola. O mais comum era recorrer-se ao trabalho gratuito dos alunos.

A equipa directiva de Francisco Laranjo contratou pela primeira vez uma designer a tempo inteiro como funcionária interna da escola. Era originalmente um cargo mal remunerado, pouco acima do salário mínimo. O próprio Laranjo se empenhou que fosse recompensado de modo digno. A primeira pessoa a ocupar esse cargo foi a ex-aluna Márcia Novais. O seu trabalho foi exemplar, tendo sido premiado inúmeras vezes ao mais alto nível.

Escrevi muitas vezes sobre esta transição para o designer como funcionário – um fenómeno rico e, na minha opinião, pouco abordado. Embora muitas vezes a «designer da escola» fosse tratada como uma mera executora, o seu melhor trabalho era autónomo, funcionando paredes meias com a edição e a curadoria. A direcção do Professor Laranjo possibilitou e apoiou essa autonomia. Não termino sem referir a professora Graciela Sousa, então vice-directora, uma figura central nos processos que referi.

Esquecer o design?

«Forget photography» tem uma capa engenhosa para um livro que está a ser uma grande leitura.1

Andrew Dewdney acredita que o paradigma da fotografia já não explica o que ele chama a imagem em rede. A fotografia também já não consegue explicar o seu papel central na construção do capitalismo, da supremacia branca e do patriarcado.

Dewdney propõe, em suma, que se esqueça a fotografia. Não quer apagar a história da fotografia, mas desnaturalizar a fotografia como um princípio crítico e histórico. Procura paradigmas alternativos que consigam lidar com a imagem em rede – imagens geradas por computadores, imagens feitas para serem usadas por computadores, imagens produzidas e usadas por pessoas mas cujos usos não são estéticos, etc.

Um dos argumentos centrais do livro é que a fotografia morreu. Sobrevive enquanto morto-vivo. Limita a nossa capacidade para compreender o presente, obrigando-nos a olhá-lo através das lentes da fotografia e da arte. Na capa, os dois retângulos tagados como «fruta» e «tigela» são uma natureza-morta vista por um sistema de inteligência artificial, um tema clássico da história de arte recriado por uma visão inumana. A imagem ilustra perfeitamente esse argumento.

Mais ainda: leva a questões sobre design que ultrapassam o âmbito do livro.

Ainda não acabei «Forget photography». Leio-o em versão ebook. Para ilustrar este artigo, procurei na internet a fotografia de um exemplar físico. No motor de busca, quase todos os resultados eram imagens digitais. Rectângulos sem espessura ou indício de matéria. Um único resultado, o que reproduzo no começo deste texto, apresenta o livro como objecto físico. Porém, a uniformidade do sombreado, o brilho da dobra da lombada, apontam para uma simulação. É uma imagem e não uma fotografia.

Há serviços na internet que geram automaticamente a imagem de um livro físico a partir de uma capa. Os alunos usam-nos para perceberem como ficarão as publicações que concebem nas minhas aulas. A maioria do design gráfico é produzida com o auxílio de todo o tipo de algoritmos. Programas como o InDesign ou o Illustrator automatizam desde o alinhamento óptico até à gestão dos cortes de linha nos parágrafos.

O design é em, em larga medida, produzido num meio onde humano e máquina se fundem. A imagem da capa de «Forget Photography» é realmente o output de um sistema de AI? É um objecto de design sem designer? Ou um designer a simular o design de uma máquina? É difícil averiguar sem ler os créditos.

O design enquanto disciplina também é assolado pelas dúvidas enunciadas em «Forget Photography». Tornou-se um lugar comum lamentar a profusão de usos não-regulados da palavra «design». Todos os meses leio ou ouço um designer a lamentar o excesso de design. Esta abundância assemelha-se à profusão de imagens que se escapam cada vez mais ao paradigma da fotografia. Tem as mesmas causas.

É raro enunciar-se as dúvidas disciplinares do design do mesmo modo que Dewdney enuncia as da fotografia. Aqui fica a tentativa: estando o design quase automatizado e estando em todo o lado de formas radicalmente novas, faz sentido continuar a chamar-lhe «design»? Pode o design enquanto disciplina explicar ou até simplesmente enumerar esta abundância de designs?

Acredito que a resposta a ambas as perguntas pode ser não. Porém, é mais difícil imaginar paradigmas alternativos ao design do que à fotografia. No design não podemos recorrer sequer a um conceito alternativo e mais abrangente como a imagem. «Design» tanto nomeia uma área disciplinar profissionalizada como, pelo menos na língua inglesa, o acto mais geral de projectar ou conceber.

Na língua portuguesa, o nome «design» é uma importação recente. Não tem sequer um equivalente verbal. É um objecto e um sujeito mas não uma acção. A disciplina é também relativamente nova. Foi difícil implantá-la. Houve inúmeros actos de resistência – dos tipógrafos que viam a sua actividade ameaçada, de quem se recusa a usar uma palavra inglesa, etc. A ideia que o design é uma actividade eterna e inerentemente humana ignora essas resistências. Sob o pretexto de expandir a história do design, rupturas e transições difíceis são esquecidas. Apagando-as, não será possível alcançar o objectivo de descolonizar o design ou de expor as suas raízes capitalistas.

É essencial esquecer, nem que seja por um momento, o design. Ver todo um conjunto de práticas não como potenciais apêndices do design mas como paradigmas alternativos, com a sua própria coerência, os seus métodos, as suas políticas, e as suas identidades.

Esquecer o design. Perguntar o que seria o mundo ou o presente sem design. O design gráfico enquanto disciplina tem seguido o caminho contrário. Enquanto os designers se queixam do uso não-regulado da palavra design, aplicam-na a artefactos cada vez mais remotos. Tudo se torna design – um livro iluminado, um papiro, a ornamentação numa lança pré-histórica.

Em nome da unidade disciplinar, alisam-se descontinuidades e rupturas. Uma delas, dissimulada à vista de todos, separa a imagem do design gráfico. Este tem-se tornado num quase sinónimo de tipografia, e, mais ainda, de texto. A imagem só é aceite como um complemento do texto. Ou então sob a forma de imagem corporativa – e «logo», no seu sentido original, significa «palavra».

Talvez o design já não queira ter nada que ver com a imagem. Ocupa-se acima de tudo com a visualidade do texto. Um objecto que não tenha texto – um poster, uma publicação – é frequentemente recusado enquanto design.

Exemplo de layout como foto-montagem. As imagens eram recolhidas consoante o papel a desempenhar na página. Podiam ser empregues como módulos reutilizáveis.

Houve épocas em que se assumia que o designer era também um produtor de imagens. Laszlo Moholy-Nagy propunha o futuro do design como a fusão de tipografia com fotografia, a que chamava Typohoto. Letras e imagens seriam pixels sobre a página. As revistas e livros de design de meados do século XX estavam cheias de reflexões sobre a imagem. Desde Moholy-Nagy a Josef Müller Brockmann passando por Herbert Spencer, todos produziram reflexões sobre a imagem, não apenas no sentido de um conteúdo mas como algo que é produzido e trabalhado pelos designers.

Uma das principais diferenças para com a arte é a preocupação central do design para com a função. O abandono da imagem assinala uma desistência por parte do design de pensar as funções da imagem. Uma das consequências é o tratamento da imagem como um conteúdo exterior e não algo cujas funções primárias podem ser decididas pelo design.

Durante o modernismo, existiu um design da imagem. Nas décadas de 1920 e 1930, algumas revistas de actualidade eram impressas usando rotogravura, uma técnica onde a totalidade da página, incluindo o texto, era produzida usando processos fotográficos. Estas publicações eram planeadas como uma montagem, sendo as fotos tiradas a pensar na sua função final. O design ditava à partida o enquadramento, o ângulo, a encenação e até o recorte da imagem. A fotografia não era um conteúdo. Era parte integrante do processo do design.

Hoje, o mais comum é a imagem a ser tratada pelo designer como mais um rectângulo no meio das caixas de texto. Há uma divisão de tarefas: o design cuida da visualidade do texto e dos elementos que interagem com este; a fotografia (ou a ilustração) tratam da imagem.

Dewdney critica este fechamento disciplinar. A solução, esquecer a fotografia, possibilita esquecer o design. Tal não significa apagá-lo mas tomar consciência dele enquanto um objecto sujeito à história e não uma constante. A história do design deveria ser também a história de como mudou radicalmente enquanto conceito. Há um esforço para fazer histórias do design que se preocupam em apresentar o design como dependente de distintos contextos técnicos, sociais e formais. Porém, a ideia do design como uma constante implica que, destas condicionantes, surge sempre o mesmo design.

Notas:

1. Estou a lê-lo porque veio referenciado na Revue Faire #41, cujo tem é «Forget (Fashion) Photography»

O centenário desaparecido.

W.A. Dwiggins usou a expressão design gráfico pela primeira vez no texto «New Kind of Printing Calls for New Design», publicado em Agosto de 1922 numa secção especial do Boston Evening Transcript dedicada às artes gráficas. 

Fez este agosto cem anos. Esperei em vão pelas celebrações. Como disciplina, o design adora este tipo de efeméride. As festas por ocasião dos cem anos da Bauhaus em 2019 incluíram livros, filmes, exposições e conferências. No caso de  Dwiggins, nada. Por quê?

Acredito que se deixou passar a efeméride porque se acredita que Dwiggins se limitou a nomear algo que já existia. Existe uma tendência dentro do design de acreditar que este existe desde sempre. Quando se acredita que o design já existe desde a idade da pedra, é paradoxal celebrar a criação de um nome.

Nomear não se limita a etiquetar uma realidade pré-existente. Pode ser um acto de ruptura. Quando Dwiggins escreveu que um novo tipo de impressão pedia um novo design, enunciava uma quebra com o passado. Propunha um «novo design».

Dwiggins propôs o design gráfico como algo novo e não apenas como uma nova designação.

É curioso que se diga sempre que Dwiggins «cunhou» o nome. O verbo sublinha um lado pessoal, popular. Porém, dentro do texto o uso era estratégico. Propunha uma nova actividade com um novo nome para modernizar a impressão. A expressão que criou foi de tal maneira adequada que viria a nomear uma área disciplinar durante décadas.