A sua própria história (quarta parte)

Na última parte, pusemos em causa a continuidade narrativa da história do design gráfico. Criticámos o modo como dá a ilusão que o próprio design gráfico é continuo, ocultando e minimizando descontinuidades e rupturas e promovendo uma concepção de design como uma constante ahistórica e universal. Rejeitando esta concepção, fica à vista um design bem mais frágil e dependente de circunstâncias históricas específicas. Deixa de estar sempre em todo o lado para se revelar raro. 

E é tanto mais raro quanto se aproxima de um design total, que agrega arquitectura, design gráfico, de moda, produto, industrial, etc. Estas áreas disciplinares só com pouca frequência se encontraram durante as suas histórias excepto como vagos princípios. O centro do design foi um espaço quase sempre pouco habitado e frequentado. Um dos síntomas deste relativo vazio é a ausência do design da história do design gráfico. Só em momentos muito localizados ele é invocado – por exemplo, Arts & Crafts, Bauhaus, De Stijl, Ulm, Memphis.

Assim, quando Rick Poynor censura a exposição Forms of Inquiry por não admitir ligação à corrente do Critical Design, oriunda das áreas de produto e de interacção, está a assumir uma contiguidade entre as áreas que tradicionalmente foi ténue ao ponto da inexistência.

Note-se que não estamos a dizer que nunca houve contiguidades entre o design gráfico e o design em geral, apenas que são mais circunstanciais do que se pensa. Por exemplo, no ensino de design essa proximidade é comum, mas é sustentada mais pela escassez do que pelo princípio teórico. Numa só instituição de ensino, é comum o mesmo professor leccionar a cadeira de história do design a alunos de cursos de design gráfico, de produto, de moda, etc. Ironicamente, a universalidade disciplinar do design acaba por se sustentar concretamente na precariedade dos docentes, na secundarização da reflexão teórica em relação à prática nos cursos de design e nas dinâmicas internas das instituições.

Entretanto, essa precariedade só se acentuou, o que veio a contribuir para uma nova convergência dos diferentes ramos do design. A neoliberalização do ensino superior operou cortes sucessivos no financiamento das instituições, fazendo-as depender das propinas e de projectos de investigação. A dependência das propinas fez aumentar o número de alunos, e diminuição da duração dos cursos, em paralelo com a multiplicação da oferta de todo o tipo de cursos em todos os graus de ensino. Em alternativa, as propinas sobem até o ensino se tornar num privilégio de poucos. As contratações de pessoal docente diminuem ou precarizam-se, obrigando os professores a leccionarem mais disciplinas, em mais áreas e por vezes distribuídas por instituições distantes.

Um dos resultados do aumento de alunos por turma associado à escassez de docentes ou de espaços é um investimento maior num ensino teórico. Mesmo tarefas tradicionalmente práticas tendem a ser ensinadas num contexto de exposição dado o tamanho das turmas. Por outro lado, o acesso a financiamento por via de projectos de investigação tende também a recompensar a produção de investigação escrita. A avaliação de desempenho de docentes é outro incentivo à produção e apresentação de papers, mestrados e teses. Em consequência, torna-se bastante difícil ter professores que sejam primariamente profissionais de atelier. Neste momento, o docente de design típico em Portugal (e não só) torna-se cada vez mais um profissional do ensino e da investigação, que para além da pedagogia também precisa de um conhecimento operativo de organização de eventos e curadoria de exposições.

No mesmo período, também se assistiu à multiplicação das bienais de design e das instituições museológicas ligadas ao design. Dentro das indústrias culturais, impôs-se a figura do curador, desde os lugares de topo até às posições mais precárias. Também na cultura, a gestão de pessoas e obras ganhou protagonismo à simples produção, o que reflecte o neoliberalismo dominante – o curador é o equivalente estético do empreendedor, uma figura que na ausência de outros, se gere a si próprio. Dentro das artes, a curadoria tornar-se-ia também numa extensão da crítica, e no seu formato dominante. A crítica desaparece ainda mais da imprensa generalizada e os seus críticos tornam-se também curadores. O design seguiria pelo mesmo caminho, com exposições e bienais a tornarem-se nos locais mais comuns onde o crítico e o historiador são convidados a exercer.

As exposições, bienais e museus do design são um terreno favorável à convergência dos diferentes designs. Um evento que consiga mobilizar mais objectos, mais praticantes, de mais áreas disciplinares tem hipótese de mobilizar mais público e mais recursos. Dentro de museus, centros culturais ou escolas de artes, a pressão para mostrar trabalho leva a que tarefas administrativas subalternas se tornem num alvo de exposições, com catálogos, sites, cartazes e restante material de divulgação.

A Forms of Inquiry é o exemplo típico do contexto que acabamos de descrever. Teve a sua primeira exibição na Architectural Association School of Architecture e um dos seus curadores Zak Kyes é o director do Print Studio da escola, encarregue do design das publicações da instituição. A exposição, que põe um conjunto de designers gráficos de topo a reflectir sobre arquitectura enquadra-se perfeitamente dentro do tipo de exposição que mobiliza as ligações internas de uma instituição de ensino e do modo como esta reflecte dinâmicas económicas e ideológicas de maior escala – uma análise contextual que Poynor não fez. No contexto da crise económica que se começava a desenrolar na época, já começavam a ganhar tracção dentro do design análises críticas centradas em dinâmicas laborais, precariedade, etc. 

Porém, a verdade é que a reflexão política do design, e em particular a sua economia e dinâmicas laborais, só muito raramente se debruça sobre áreas como o ensino, a escrita ou a curadoria. Estas áreas são consideradas secundárias em relação ao exercício do design num modelo profissional liberal (prestação de serviços).

Seria menos verosímil reprovar Poynor por não se ter debruçado na intersecção entre a curadoria e o design, que na altura já era visível mas pouco comentado criticamente, mesmo nas artes. Porém, em retrospectiva pode-se interpretar a designação «crítica» da exposição como enquadrada dentro da ascensão de uma crítica curatorial.

De qualquer modo, importa reter que o período de tempo onde se desenrolou esta polémica assistiu a reconfigurações dramáticas da área disciplinar do design, levando a uma reaproximação rara da história e da crítica dos diversos designs. Tal pode-se verificar na multiplicação de histórias gerais do design que incluem o design gráfico – como é o caso da World History of Design, de Victor Margolin ou The Story of Design: From the Paleolithic to the Present, de Charlotte e Peter Fiell.

(Continua…)