Tinta da China: um design inimitável

No que diz respeito ao design, é possível que a Tinta da China seja a editora portuguesa mais particular das últimas duas décadas. Desde os primeiros livros, e graças sobretudo ao talento de Vera Tavares, criou um lugar só seu, tão distante dos tiques da edição independente como da mais comercial.

Não se pode dizer que a Tinta da China seja influente porque ninguém a imita. Nem sequer aparecem más cópias. Penso que isso se deve ao facto de Tavares ser alheia às tendências e também aos vícios do design de livros português. Pensa o design dos livros como uma ilustradora, enquanto a maioria dos designers tendem a confundir tipografia e sobretudo impressão com design. Tavares trouxe por vias inesperadas o desenho de volta ao design numa época onde os dois se isolaram. Talvez por isso, consegue ser respeitada mas não imitada. Nos tempos que correm, seria preciso deixar de ser designer para a copiar.


Por comparação, a editora portuguesa mais copiada das últimas décadas será porventura a Assírio & Alvim. Qualquer livro de poesia impresso em Portugal tem inscrita a obrigação visual de se situar em relação à Assírio: ou é uma lage monocromática de ardósia com tipografia serifada alinhada ao centro sobre a ampliação saturada de uma fotografia ou ilustração (Averno, Língua Morta, e por aí adiante), ou então é outra coisa qualquer. Toda a poesia portuguesa é descendente gráfica da Assírio. Esta, infelizmente, tornou-se num mau pastiche dela mesma. Os seus livros já não parecem lápides modernistas talhadas no xisto. São festivos. Têm a lombada redonda de certas agendas.

Se a Assírio nos seus melhores tempos produzia livros de pedra, os da Tinta da China parecem cortados em cartolinas de cores densas e quentes. Letras, imagens e texto soletram-se num abecedário de formas e fontes arredondadas, de contorno irregular, como se fossem aparadas com uma tesoura sobre papel de lustro.

O aspecto físico dos livros é disciplinado sem o aparentar. Contudo, permite variações inesperadas. As melhores são as colecções de humor e poesia coordenadas respectivamente por Ricardo Araújo Pereira e por Pedro Mexia. No primeiro caso, os livros eram guilhotinados depois de encadernados, deixando a descoberto as costuras da lombada. O processo foi popular na década passada, ao ponto de se tornar num tique. Era usado para contrastar a corda e a cola, os alicerces do livro, com superfícies lustrosas, acabadas e digitais. Na Tinta da China, deu-se a volta ao cliché usando o processo para criar volumes brancos e fofos onde o texto e as ilustrações pareciam mais recortados do que impressos. Se o objectivo comum da costura à vista era desfazer a geometria do livro, mostrando a sua matéria, aqui conseguia-se o efeito oposto: os livros, num passe de mágica, alcançavam a leveza despretensiosa que o seu tema, o humor, pedia.



Entretanto, já vi pelo menos dois livros da Tinta da China que não me impressionaram. Falo do Flecha de Matilde Campilho, com design assinado por P. Serpa, que me lembrou a Cotovia na década de oitenta, embora em versão menos inspirada – assemelha-se talvez na fonte, embora esta seja mais larga. Em termos materiais, cores e toque, é uma capa agradável. Os três elementos tipográficos são, contudo, demasiado distintos: título composto num bloco de maiúsculas espaçadas numa fonte de espessuras contrastadas; nome alinhado por baixo em minúsculas; logo da editora em letras estreitas e de desenho linear (ou seja de espessura não-contrastada). A desarticulação não é extrema mas também não é elegante.

A sensação repete-se e amplia-se na capa d’O Cânone da autoria de João Bicker. Também aqui o toque e a matéria são atraentes mas o design não consegue articular a variedade dos diferentes elementos, que são demasiado díspares em termos formais: título numa fonte de recorte interessante, levemente excêntrico, desenho contrastado, a lembrar certas fat faces oitocentistas, desperdiçada numa composição banal, ilustrativa, que não a favorece; nomes dos editores numa fonte linear light que não combina nem contrasta com o título; logos da editora e da entidade que co-edita que também não encaixam, entre si e com o resto. Provavelmente queria-se sinalizar austeridade mas o espaço negativo generoso serve sobretudo para isolar elementos que não casam – a lombada parece um estilista a tentar em vão disfarçar a publicidade num fato de Fórmula 1.

É possível que estas capas sejam exemplos isolados, mas é pouco provável. Sabia-se, com toda a certeza, que seriam best sellers. Bicker, inclusive, é um designer habitualmente convocado para sinalizar uma certa tradição editorial auto-consciente e um pouco pomposa — o que se adequa bastante bem ao Cânone. Ou seja, não me parece que a escolha destes designs seja acidental ou resultado de um compromisso ou contingência.

Também me parece natural que a Tinta da China sinta vontade de se reinventar. Contudo, não consigo deixar de ver estas tentativas senão como passos em falso. Depois de uma década de noventa bastante inventiva, o design editorial virou-se para a tipografia. Em Portugal, sob a capa da recuperação de velhas e supostamente melhores tradições, produziu-se muito trabalho onde se confunde qualidade e luxo de impressão com design — esquecendo que a própria génese do design gráfico assentava numa reinvenção radical da tipografia.

Usam-se os caracteres tipográficos não como um meio mas como uma caricatura kitsch de si próprios – quanto mais autênticos tentam ser, mais respeitosos, mais realistas, mais caricatura ficam. Os caracteres na capa d’O Cânone são um bom exemplo disso. Outro são as publicações auto-comemorativas da Imprensa Nacional, que pelo menos têm a desculpa de serem tipografia feita a propósito de tipografia. São uma recuperação religiosa de técnicas antigas de impressão e encadernação, de organização luxuosa de papéis e tintas, das mais esmeradas reproduções fotográficas, mas o que é apagado com esmero arqueológico é o design no seu sentido mais crucial, político e moderno. É, em suma, tudo muito conservador.

Entristece-me ver indícios da tendência na Tinta da China. Há editoras que se têm inventado e reinventado num sentido mais moderno, menos dado a nostalgias. Ou pelo menos onde a nostalgia é ensaiada de modos novos. Sou suspeito porque se trata de uma das casas que me edita, mas a Orfeu Negro tem tido umas capas prodigiosas. A Dois Dias também. A Elsinore percebeu a tendência actual e muito americana de fazer das capas um pequeno poster, sem perder nada com isso.

(Uma nota final: não me interessam muito os bastidores das editoras. Boa parte da crítica literária portuguesa tornou-se numa crónica dos arrufos entre personalidades editoriais, esquecendo desde há muito a própria literatura – já para não falar do design, que se reduz à menção do nome de quem fez tornado em adjectivo seja ele positivo ou negativo.

Estava para escrever este texto sem usar os nomes de nenhum designer. Para poupar pesquisas no google aos menos informados, decidi inclui-los. Só não sei quem fez o design da Assírio & Alvim. Nunca soube.* Como não o assinalavam nos livros, sempre assumi que não lhes fazia diferença).

* Entretanto, já me disseram que é da autoria de Manuel Rosa. Aqui fica um artigo com ele a falar sobre o assunto. Reiterando o que já disse acima: o ideal para mim seria escrever críticas sem nomes ou onde estes fossem apenas abreviaturas para opções formais ou políticas. Perante as tricas altamente fulanizadas do mundinho editorial português só sinto enjoo.