Estudei design durante o período onde surgiram os canais de televisão privados em Portugal. Apanhei portanto com uma dose acima do recomendado de designers a dizer mal do logotipo da SIC, concebido em 1992 pelo designer brasileiro Hans Donner. Se, como eu foram alunos de design, com toda a certeza já alguém vos ensinou que um logotipo de cores planas é melhor do que um apinhado com degradés. O da Sic era o exemplo acabado de tudo o que um logotipo não deveria ser: 3D, não sei quantos milhões de cores organizadas numa quantidade de degradés difícil de precisar.

Um contra-exemplo era o símbolo da UPS desenhado por Paul Rand. Plano, bidimensional, de traço linear e construção geométrica evidente. Inclui a representação simplificada de um pacote postal – o que só por si seria uma excelente logótipo para o modo como muitos designers se vêm a eles mesmos: uma grelha humanizada por um lacinho.

Em 2003, matilhas inteiras desses designers uivaram à lua quando a UPS mudou o seu logo:

O horror. Uma década mais tarde fez-se uma nova versão sem degradés (o da SIC foi também actualizado, embora mantendo os seus milhões de cores e look 3D).
A argumentação para criticar estes degradés tridimensionais é variada: eram maus pela dificuldade técnica de reproduzir as suas cores e gradações em vários suportes; ou então eram desnecessariamente complicados, dificultando a percepção; ou não eram elegantes e económicos; ou cediam a modinhas passageiras.
No presente ensaio, tentarei outra explicação. O meu tema não são os logos da SIC ou da UPS per se, mas a obsessão do design pela bidimensionalidade, que motiva uma desconfiança extrema pelos degradés – objectivos ambiciosos, portanto.
Usarei principalmente métodos formalistas, porque o que tento tratar aqui é duma história cultural das formas e das estratégias formais. Ou seja, tentarei fazer uma história que não é a das condicionantes técnicas, pessoais ou institucionais que ditam a evolução de uma forma, mas da argumentação específica, da teoria usada para justificar o uso de uma dada forma.
No fim deste texto, verão – espero eu – que traçar uma breve história da obsessão pela bidimensionalidade no design demonstra não só a validade de aplicar a esta área métodos formalistas vindos da história de arte, como também demonstrará que a génese do design e do próprio formalismo em história de arte estão ligados.
É uma tese surpreendente, reconheço, porque dentro do design, o formalismo tem uma péssima reputação, tanto enquanto prática como teoria. Classificar como formalista um objecto ou um designer é pouco mais do que um insulto. Em textos anteriores, encetei uma reabilitação do formalismo. Sugeri que poderia ser uma metodologia crítica particularmente eficaz a desmontar o universalismo modernista que ainda assume um papel central na identidade do design.
A maioria dos esforços desenvolvidos para criticar esse universalismo têm-se concentrado nos conteúdos, temas e contexto, deixando intocado o núcleo das decisões formais. Fazem-se análises críticas bastante sofisticadas da política do design em termos dos clientes, dos conteúdos e dos contextos. A natureza específica de como se tomam decisões formais e projectuais permanece em larga medida por investigar – sobretudo no que diz respeito à política da forma.
Se as decisões formais não forem universais, as implicações práticas são evidentes. Para descolonizar o design, por exemplo, não basta mudar de cliente, de temática ou de contexto. Será preciso descolonizar todo o pensamento formal. Parte desse processo começa a ser feito. No design, a grelha assume um papel quase identitário, assente por sua vez na ortogonalidade enquanto esquema universal de composição. No entanto, de acordo com a investigação do designer Simba Ncube, os Zulu vivem no que:
«já foi descrito como uma “cultura circular”. As suas casas são redondas, a terra não é arada em linhas rectas mas curvas, e as suas povoações são projectadas em formações circulares. Tendo desenvolvido estas soluções sofisticadas para organizar o espaço privado e comunitário, a arquitectura zulu deveria ser entendida como um design inovador. A chave para a descolonização passa por perceber que os standards que nos sãos ensinados não são universais.»

Contudo, embora Ncumbe recupere um modo de projectar não-europeu, equipara-o a uma forma de design. Ora, nada nos garante que o design seja universal. Assumir que os métodos de composição de outra cultura são design é desvalorizar a possibilidade que possam estar enquadrados dentro de regimes de projecto totalmente distintos. Um edifício, tal como um livro ou uma peça de vestuário, pode não ser concebido através do design (ou seja, como um problema a resolver usando técnicas de projecto) mas, por exemplo, através de rituais religiosos, procedimentos militares ou burocráticos – entre muitas outras possibilidades.
É preciso também ter presente que o próprio design, durante a sua génese no século XIX, era usado explicitamente como um conjunto de métodos para processar símbolos de outras culturas, apropriando-os para reprodução industrial enquanto ornamentos. Já comecei a tratar estas origens imperialistas do design em outros lugares. Queria apenas sublinhar que esse processo de apropriação se centra numa análise formal sistemática. Um símbolo religioso, por exemplo, era decomposto nas suas formas elementares e reconstruído enquanto ornamento modular, passível de ser usado em todo o género de contextos.

Produziam-se taxonomias dos diferentes tipos de símbolos organizados tanto pelas suas características formais como pela sua origem geográfica, cronológica ou étnica. Este processo está exposto com bastante clareza em obras como The Grammar of Ornament (1856), de Owen Jones, onde a ornamentação apropriada de todo o tipo de culturas e épocas é apresentada como uma gramática, ou em Line and Form (1900), de Walter Crane, sob a forma de um diagrama genealógico.

Este tipo de análise tem afinidades claras com a crítica e história de arte formalista. Reconhece-se inclusive a ambição formalista de analisar de modo não hierárquico as produções artísticas de todo o tipo de culturas, relacionando-as entre si através das estratégias formais.
A semelhança entre os métodos do formalismo na arte e os do design pré-moderno não é fortuita. As duas correntes em larga medida coincidiram no tempo. Do lado do design, Owen Jones publica The Grammar of Ornament em 1856, Walter Crane publica Bases of Design em 1898 e Line and Form em 1900. Na história e crítica de arte, Wölfflin, um dos formalistas mais importantes, publica as suas obras mais influentes entre 1888 e 1915; Alois Riegl entre 1891 e 1902.
Porém, os pontos em comum não são um mero reflexo de um zeitgeist geral da época. A teoria do design e o formalismo na história de arte tinham pontos em comum porque em certos aspectos fundamentais eram uma e a mesma coisa. Alois Riegl, um dos fundadores mais cruciais do formalismo na história da arte, começou por propor as suas teorias formalistas numa história da ornamentação Stilfragen: Grundlegungen zu einer Geschichte der Ornamentik (1893). Na altura em que a escreveu, Riegl era curador no Museu da Arte e Indústria de Viena, cargo que manteve durante dez anos. O formalismo na arte começou em parte por ser um projecto de história de arte que visava incluir nela, de modo não hierárquico, as artes decorativas – encontramos aqui o eco da valorização das artes menores de William Morris, expresso na mesma altura, e de que os livros de Crane, seu amigo e colaborador, são um rebento directo.
Este fundamento do formalismo na investigação crítica do ornamento encontra-se em outras obras charneira, como o Vie des Formes de Henri Focillon (1934), ou The Shape of Time: Remarks on the History of Things (1962), do seu aluno George Kubler – um dos exemplos concretos dados por Focillon do significado autónomo da forma é a caligrafia árabe, um tipo de expressão que já na época era central dentro do design gráfico.
O ornamento é deste modo crucial à fundação das doutrinas críticas formalistas, que assentavam numa separação entre forma e conteúdo que era também central no design da época. Era através da autonomia da noção de forma que se podia apropriar e trabalhar símbolos de outras culturas, transformando-os em design. Ou seja, a separação entre forma e conteúdo no design nasceu e começou por ser aplicada num contexto de imperialismo colonial.
Porém, os pontos em comum entre formalismo e design não são apenas teóricos mas práticos e formais. A partir de meados do século XIX, começaram a desenvolver-se práticas formalistas na pintura, que passavam por ver a pintura não como a representação de objectos, pessoas ou narrativas, mas como a organização de formas e de matéria sobre uma superfície. O crítico inglês Walter Pater já tinha afirmado em 1866 que «in its primary aspect, a great picture has no more definite message for us than an accidental play of sun-light caught as the colours are in an Eastern carpet.» (p.45) assinale-se mais uma vez a ligação recorrente entre formalismo, artes decorativas e por sua vez orientalismo, patente na referência ao tapete Oriental). Estas ideias sobre a importância da forma já vinham desde Kant, porém limitavam-se à descrição ou análise crítica de obras. Ao longo do século XIX, uma sucessão crescente de artistas começou a aplicá-las como um programa para produzir as suas obras.

Um caso paradigmático é o pintor James Abbott McNeill Whistler. Em 1862, vê recusada pela academia a sua obra conhecida por Woman in White. Um dos motivos do escândalo que se seguiu era o seu desrespeito pela perspectiva que achatava a cena, tornando-a bidimensional. A pintura também foi acusada de ser uma má ilustração de um dos livros mais populares da altura, o folhetim proto-policial The Woman in White (1859), de Wilkie Collins. Whistler defendeu-se dizendo que não lhe interessava ilustrar um livro que nunca tinha lido. Declarou que a coincidência entre os títulos era da responsabilidade da galeria. Tinha simplesmente tentado pintar uma rapariga vestida de branco em frente a uma cortina. Baptizou o quadro como Symphony in White n.1 para sublinhar as suas intenções formais.
Esta ênfase no carácter bidimensional e não representativo da pintura acentuar-se-ia durante a segunda metade do século XIX. O próprio Whistler investiu em formas cada vez mais arrojadas de abstracção. Em 1877, o seu Nocturne in Black and Gold – The Falling Rocket é acusado pelo crítico John Ruskin de ser «um balde de tinta atirado à cara do público», motivando uma acusação de libelo por parte do pintor – que este veio a ganhar. Tudo isto culminaria nos movimentos abstractos do começo do século XX.

Menos referida é a igual tendência dentro do design do mesmo período para valorizar composições bidimensionais e não-representativas. É comum as histórias do design referirem a falta de qualidade sentida nos produtos ingleses por ocasião da Exposição Universal de 1851. É também habitual esse problema ser atribuído a questões técnicas. Uma das origens mais prováveis dessa referência é o Pioneers of Modern Design, de Nikolaus Pevsner (1962), uma das primeiras histórias do design.
Porém, o que é omitido é que essa falta de qualidade também era apresentada por Pevsner como um problema estético: «A qualidade estética dos produtos era horrorosa. Houve alguns visitantes dotados de sensibilidade que o notaram e logo surgiram em Inglaterra e noutros países debates sobre as razões de um fracasso tão patente.» Comentando algumas das tapeçarias expostas, aponta as causas do desaire:
«Pode ser que o artista se tenha inspirado na ornamentação setecentista, mas o que aqui é original é apenas o mau gosto e o exagero. Além disso desprezou todas as regras básicas da decoração em geral, e em especial as da decoração de tapetes; vemo-nos forçados a andar por cima de voltas salientes e flores grandes e desagradavelmente realistas; parece incrível que se tenha podido esquecer tão completamente a lição dos tapetes persas. E esta barbárie de modo nenhum era exclusiva da Inglaterra; as outras nações foram igualmente férteis em atrocidades. Veja-se, por exemplo, o desenho […] para uma manta de seda, exposto na secção francesa, cuja mistura de estilização e realismo é pelo menos tão incongruente como a do tapete inglês; revela idêntica ignorância duma necessidade básica na criação de padrões, que é a integridade da superfície, e idêntica vulgaridade dos pormenores.» (p.52)
Em resumo, estes padrões, pelo seu desenho que misturava motivos planos com representações realistas, atentavam contra a «integridade da superfície» que mais não era do que a sua natureza plana. Se algumas dúvidas houvesse quanto a esta interpretação, Pevsner dissipa-as pouco depois, quando enumera as regras programáticas do design propostas por Henry Cole no seu Journal of Design and Manufactures (1849), a primeira revista dedicada à disciplina. Uma delas dita, precisamente, que: «os papéis de parede e os tapetes não devem ter desenhos “que sugiram seja o que for além de um plano”». Comentando os padrões de chintz de Owen Jones, gaba-lhes o desenho, que «tem, e muito bem, um carácter perfeitamente plano, sem sombras. Em segundo lugar, as massas e as linhas são distribuídas uniformemente, com o fim de produzir à distância o efeito de um plano.»
Reencontra-se esta bidimensionalidade programática, enfatizada por motivos decorativos uniformes, nas páginas de livro desenhadas por William Morris ou Will Bradley. A este último, o crítico Adolf Loos lançaria o elogio (raro, vindo dele) de o considerar, num texto de 1898, o rei dos tipógrafos. O louvor servia para censurar por tabela a má qualidade das artes gráficas da época e que Loos atribuía à moda de se representar letras em perspectiva com sombras. Referia-se a tipos de letra como o usado para escrever a palavra «lost» no anúncio abaixo.

Sobre estes, Loos insistia que «só se trata de retratos de letras, e não de letras propriamente ditas. As letras feitas para o papel não têm outra força senão a que lhes é dada pela tinta de impressão.» (p. 162) Atacava também a maneira como se resolvia a «difícil questão» de combinar caracteres tipográficos com imagens»:
«Imagine-se, por exemplo, o efeito que provocaria uma paisagem dos Alpes pintada no método habitual de pintura a óleo se se introduzisse no éter azul ou no lago verde, no estilo tipográfico habitual, os seguintes dizeres: “O chá de ervas dos Alpes é o melhor!”. E nem é preciso imaginar – vê-se, de facto, com muita frequência.» (p. 163)
A referência evidente era a tipografia inspirada nos métodos de composição usados na ilustração litográfica, onde era frequente as letras aparecerem como objectos em paisagens, naturezas mortas, cenas de rua, etc.

Para Loos, o antídoto seria o trabalho do tipógrafo americano Will Bradley, onde não havia ilusões ou sugestões de perspectiva:
«Ele vê de uma forma muito primitiva. Vê apenas duas cores e a ausência delas, que para ele significam um papel em branco, pois tem de se desenvencilhar só com uma impressão a duas cores. Mas com essas duas tonalidades consegue causar um efeito mais forte do que os nossos pintores com a sua impressão a nove cores. O seu mundo é pequeno, tão pequeno como é, afinal, o mundo do artesão. Mas nesse mundo é rei.» (p. 165)

Regressamos aqui, de modo muito evidente, à obsessão do design gráfico pela bidimensionalidade e por uma paleta de cores limitada. Resta perceber como uma opção formal concebida no final do século XIX se enraizou como uma espécie de identidade do design gráfico enquanto disciplina.
Há várias hipóteses, que não se excluem umas às outras. A mais evidente é que o design se começou a definir enquanto disciplina precisamente quando esta tendência estava no seu auge, sendo divulgada em revistas, ensinada em escolas e manuais. Tal garantia a sua passagem às gerações seguintes de praticantes, que concordado ou não teria de lidar com ela enquanto cânone dominante. Porém, esta é uma teoria de base institucional. Penso ser possível desenvolver uma teoria formalista que explique o mesmo fenómeno.
A bidimensionalidade tornou-se dominante porque a passagem do design pré-moderno para o design moderno implicou também uma mudança drástica na maneira como se pensa a forma.1 No design pré-moderno, a forma era apenas uma etapa no processo através do qual se transformava em ornamento os símbolos e estilos de todo o tipo de culturas ou épocas. Era o mecanismo conceptual com que se isolavam estes símbolos dos seus conteúdos e funções originais de modo a que pudessem ser integrados numa produção industrial capitalista. Nesse aspecto, era um dispositivo no qual se depositava uma certa universalidade que, contudo, servia para colocar num plano de igualdade objectos muito distintos oriundos de culturas distintas, de contextos ou tempos muito diferentes.
Para o design moderno a forma deixou de ser um passo intermédio mas um fim em si mesmo. O design deixou de ser uma síntese de estilos e símbolos heterógeneos e passou unicamente a concentrar-se no processo de abstracção formal em si mesmo, que se torna sinónimo do próprio design. A partir deste ponto, deixa de ser necessário perceber o modo como diferentes símbolos e objectos se relacionam entre si através da forma, porque só interessa esse processo interno do design, tido como natural, universal e intemporal. Desse modo, cristalizam-se os princípios da bidimensionalidade e da economia de cores como um dogma dominante, em relação ao qual todas as outras posições passam a significar fealdade, mau gosto, rebeldia ou experimentalismo.
O que alimenta num primeiro momento este design moderno já não são os símbolos e objectos de outras culturas ou épocas, mas conceitos como a integridade dos materiais, das superfícies e as próprias regras de composição usadas como um princípio estilístico visível: a grelha, o espaço negativo, o alinhamento à esquerda. É uma forma que aspira a ser uma emanação neutra das funções que o design reclamou durante o modernismo: a de comunicar conteúdos organizando-os de modos límpidos e imediatos.
Sobra uma última questão: se o formalismo foi tão central no desenvolvimento do design, porque é tão rejeitado desde então? Diria que tal se deve ao facto de que qualquer análise formalista do design destrói a ilusão da universalidade formal do design. Embora já se aceite há muito que o design não é um processo neutro, essa crítica é em geral feita pelo lado dos conteúdos tratados, dos contextos políticos ou das condições económicas ou laborais. Falta fazer essa crítica pelo lado mais íntimo e intocado, para o qual os designers não têm nem vocabulário, nem mecanismos conceptuais adequados. A sua identidade como grupo depende em parte dessa ignorância.
Para fazer crítica formalista, que é como quem diz, para chegar ao contexto social e político através da forma e não o contrário, é preciso isolar num primeiro passo os objectos de design do seu conteúdo. Ao fazê-lo, tornam-se de imediato visíveis relações entre o design e a arte, formas comuns, estratégias formais comuns e argumentação comum. A divisão entre estas duas disciplinas torna-se permeável, abrindo-as a novos objectos, novos métodos e processos.
Notas:
1. Richard Hollis enunciou este desenvolvimento de modo bastante conciso no seu texto Ornament as Information: «[…] ornament is no longer taken seriously by designers. It is little used. Ornament has been in conflict with the practice and attitudes of designers from the beginning of the twentieth century. Form was to take the place of ornament.» (p.148) em Writings About Graphic Design, Occasional Papers, 2012.
Muito bom. Penso que os livros de fontes tipográficas são uma extensão disto. Como se fossem livros de padrões de papel de parede.
Isto soa muito a uma ‘antropologia’ do design e é um algo que começo a sentir cada vez mais falta. Porque é que fazemos o que fazemos?
Obrigada Professor