Começo todos os anos a minha cadeira de Crítica com uma conversa sobre a relação entre verdade e design. Parece-me essencial nestes tempos de desinformação, fake news e teorias da conspiração.
Tento que não seja uma discussão alheada da prática – a meio do curso, muitos alunos já consideram tudo o que é teórico como uma perda de tempo. Portanto, esta primeira conversa trata de um dos costumes mais simples e mais quotidianos de qualquer designer, seja ele estudante, profissional ou até crítico: a chamada conversa de vender o peixe (já a tratei em parte noutro texto).
Qualquer designer, concordando ou não com a expressão, já passou por ela. Já a ouviu ou já a fez. Nos cursos mais «pragmáticos» dedicam-lhe uma boa porção do treino do aluno. A apresentação e avaliação dos trabalhos – o que em inglês se chama «critique» – inclui, do lado do apresentador, a conversa de «vender o peixe», quando este imagina o seu interlocutor como um cliente. «Vender o peixe» dá a entender não apenas uma transação, mas ter algum trabalho a fazê-la, a convencer o potencial comprador a fechar o negócio. Ou seja, implica um trabalho distinto de pescar o peixe, um esforço extra, e também uma degradação. Vender o peixe é uma actividade conotada com lucrar com a venda de bens que não são tão frescos quanto querem parecer, mas mesmo o melhor peixe precisa de uma conversa de vendedor, porque é do interesse do comprador diminuir retoricamente a sua qualidade do que vê de modo a conseguir um bom preço. No fim de contas, tem de se vender o peixe, mas o ideal seria o peixe vender-se a ele mesmo.
Comecei este novo blogue porque queria tratar a história do design, português e não só, nos últimos vinte anos. Comecei por aí, mas «desviei-me» para questões que não são secundárias mas de base. Parece-me crucial repensar os métodos pelos quais se pratica a história, de maneira a não cair nos vícios habituais da história do design. A saber: fazê-la unicamente como uma história das pessoas (designers ou clientes) ou das instituições (firmas, escolas, países, etc.).
É uma história da qual o próprio design me parece estranhamente ausente ou então subordinado a investigação que poderia ser perfeitamente ser produzida por outras histórias – de Portugal, das instituições, do ensino artístico, das áreas para as quais o design trabalha.
As unidades de estudo são quase sempre o indivíduo, a instituição que ensina, encomenda, produz ou patrimonializa o design. O resultado são narrativas onde o pensamento formal do design se limita breves apontamentos fragmentados servindo de adjectivação a análises biográficas, institucionais, económicas ou legais.
É óbvio que a história do design se deverá socorrer de todas as investigações que pareçam pertinentes, mas corre-se o risco de a tornar numa sociologia génerica que só por acaso trata do design. Ou, pior, corre-se o risco de ficar bloqueado num nível onde tudo o que interessa é encontrar ainda mais outra estorinha engraçada ou emotiva da vida de um velho praticante – de como o designer X pode ter encontrado o escritor Y na tertúlia do Café X e depois deixaram de se falar.
Não haveria mal nenhum em fazer esse tipo história mas tornou-se num beco sem saída. Faz parte do processo de trabalho ir falar com as pessoas, registar uma história oral pelas pessoas que a viveram. Porém, o problema é que tal não pode ser um fim em si mesmo. Sobretudo quando se tornou uma prática bastante territorial, tóxica e conservadora.
Pela minha parte, já não tenho paciência. Tanto mais que já tive a minha dose de discussão com gente que pensa ser esta a única maneira de fazer a história da disciplina. Apesar da aparência exterior acolhedora e coca-bichinhos, não há nenhuma abertura para outros métodos que não o coleccionismo de feira da ladra e de histórias engraçadas de velhinhos.
A exposição A Força da Forma foi a minha primeira tentativa de fazer uma história do design português onde as questões formais não fossem apenas adjectivos de relações pessoais ou institucionais. Tentei partir da forma e chegar daí à política, às pessoas e às instituições. Assim, foi uma narrativa de apropriações, de reutilizações, de roubos, de coisas que se faziam porque eram o oposto de outras. Agarrei em temas tornados estafados do design português, como o Almanaque, a &etc, a Kapa, o Independente ou o Sebastião Rodrigues e tentei demonstrar como os designers também se relacionavam uns com os outros através do design, de um modo vivo, afectivo ou antagónico. Tentei uma história do design onde o próprio design não se reduzia a uma ilustração.
Foi um processo difícil porque falta à história e crítica do design contemporâneo a vontade, o método e o próprio vocabulário para tratar a forma como um problema. Este blogue serve em parte para continuar a desenvolver métodos e objectos que possam expandir a maneira como se critica e historia o design.
«“Utopia”, wrote Lenin in 1912, “means a place that does not exist, a fantasy, invention or fairy tale”. Progress towards communism was supposed to be scientific, rational and determined by the proletariat rather than bourgeois specialists and their utopian predictions. There should be no need for utopia, as the proletariat was building it for itself. “The less freedom there is in a country”, Lenin continued, “the more easily political utopias arise and the longer they persist”. For Soviet officialdom, utopia was a pejorative term that signified only hopeless, impossible dreams.
Like utopia, the word design was habitually maligned during the Soviet sixties and seventies. In the 1960s, dizain was perceived as the symptom of irrational modes of consumption and overproduction. Why have 300 types of refrigerator on sale when you could have three? Planned obsolescence, an important driver of industrial growth in post-war economies, was seen to turn consumers into slaves of the corporations who used design as a tool for regulating cycles of consumption.»
Estudei design durante o período onde surgiram os canais de televisão privados em Portugal. Apanhei portanto com uma dose acima do recomendado de designers a dizer mal do logotipo da SIC, concebido em 1992 pelo designer brasileiro Hans Donner. Se, como eu foram alunos de design, com toda a certeza já alguém vos ensinou que um logotipo de cores planas é melhor do que um apinhado com degradés. O da Sic era o exemplo acabado de tudo o que um logotipo não deveria ser: 3D, não sei quantos milhões de cores organizadas numa quantidade de degradés difícil de precisar.
Tentando responder à pergunta do título, começaremos por investigar quais as funções da crítica de design. Quem a exerce? Quem a consome?
Poderíamos começar por dizer que a crítica nos tenta ajudar a avaliar um determinado trabalho ou designer. Diz-nos se é bom ou mau através de argumentos. Os agentes e os propósitos dessa avaliação são variados: pode ser um crítico a ajudar um consumidor a escolher ou não um produto; pode ser um cidadão a queixar-se de um determinado serviço público; pode ser um professor a propor que o trabalho de certo designer merece ser conhecido por uma nova geração. Por vezes, a crítica tenta convencer-nos que um objecto nem sequer é design, e que alguém nem sequer é (ou devia ser) designer. A crítica parece portanto não apenas avaliar a qualidade de objectos mas também os limites da disciplina, quem a pode praticar, como pode ser praticada, o que deve ser o seu ensino ou a sua história.
No último post, queixava-me da quase total ausência de uma crítica com base na natureza política da forma. Quis o destino que no mesmo dia apanhasse esta investigação na Vice sobre a chamada Gentrification Font. É um bom exemplo de análise simples mas competente de um objecto que consegue ligar as suas opções formais e o modo como foi produzida ao contexto político de que faz parte.
O esquema é sempre o mesmo com pequenas variações. Um designer repara numa tendência. Muitos colegas usam a mesma fonte, ou alinham o texto de certa maneira, ou empregam ilustração ou imagens semelhantes. Irrita-se. O passo seguinte é declarar que se trata de uma modinha. Uma «trend».
Conclui que já não se pensa o design, que agora é só tiques e maneirismos no lugar de soluções ponderadas e duradouras. Tudo forma sem conteúdo, cópia ignorante, diminuída pela preguiça, dos grandes exemplos do passado. Não há nada de mal num estilo suceder-se a outro, concede. É assim que as coisas são. Porém, lamenta que, ao aplicar tais receitas, já não haja qualquer preocupação em investigar a sua origem ou analisar o seu significado.
O nosso designer só sossega quando inventa um nome sarcástico para a tendência. Escreve um artigo, um post, faz uma ilustração ou um cartaz a denunciar a «trend».
Deverá estar ligado para publicar um comentário.