Pioneirismo na Primeira Pessoa: As formas da história do design

O curso era novo, o professor um designer. Não tinha qualquer formação em história. As aulas, decidiu, não podiam ser secas e académicas. Seriam pessoais, intrigantes, um tudo nada teatrais. Na primeira de todas, mostrou gravações em fita magnética de Marinetti, Lissitsky e Gropius, cada um lendo os seus manifestos num inglês eriçado de sotaque. Os alunos ouviram, com a atenção não diluída dos primeiros dias. No fim, revelou-lhes que ele próprio, disfarçando a voz, tinha gravado os textos. Estava convicto que a melhor forma de explicar uma área ainda nebulosa como o design gráfico seria através do testemunho dos seus melhores praticantes, e não através do conhecimento indirecto, teórico, dos historiadores.

Ao simular a voz dos pioneiros, o professor de história não estava apenas a enriquecer a experiência dos alunos, mas a falsificar por instantes, nem sequer um documento, porque os textos existiam, mas a sua autenticidade – a ligação material directa entre esse documento e a pessoa que o escreveu, neste caso o registo da sua voz. Ao instalar dentro da história do design este grau ínfimo, superficial, de ficção, o professor estava, provavelmente sem o saber, a chamar a atenção para um problema importante, já colocado por Michel Foucault ou Hayden White: o historiador nunca se limita a apresentar documentos de modo neutro mas, através da sua actividade, constrói-os.

Tal não significa que os objectos, acontecimentos e pessoas de que fala não tenham existido, apenas que é o historiador – ou, com mais rigor, a história como disciplina – que os institui enquanto documentos. Antes de haver uma história do design, ou mesmo uma disciplina a que se chama design, a Bíblia de Gutenberg nunca seria apresentada como um objecto de design. Seria um documento pertencendo às histórias da religião, do livro, da tecnologia ou da tipografia. O historiador do design cria, retroactivamente, um passado para o design, apropriando para ele acontecimentos, objectos e praticantes. Em suma, a história não é, nem pode ser, o reflexo, ou mesmo apenas o registo, de uma realidade que a antecede, porque essa realidade sempre foi, na sua totalidade, irrecuperável.

Pela mesma ordem de ideias, as gravações levantam outro problema, o das formas que a história do design e o próprio design assumem – não apenas as gráficas mas as narrativas. As duas estão ligadas, como é evidente. Ao dar forma a um livro de história, o designer está também a determinar o modo como a história é apresentada e, de certa maneira, também colabora na sua construção.

O designer e historiador Richard Hollis, por exemplo, considerava problemático o uso de reproduções de elevada qualidade para simular a experiência dos objectos em livros de história. No seu livro Graphic Design, a Concise History, as imagens são tratadas como meras referências, apresentadas em pequena escala e a preto e branco. Hollis avisa numa nota que o leitor as deve ver como imagens projectadas numa conferência. Nunca deviam ser tomadas pelos objectos representados. Uma reprodução realista, se não mostrasse a sua artificialidade, era para Hollis uma impostura. De modo talvez inadvertido, as gravações encenadas também sinalizavam aos ouvintes que a história do design nunca é uma reprodução exacta de algo que lhe é exterior e pré-existente mas uma narrativa, uma forma imposta a objectos, pessoas ou acontecimentos. Este ensaio pretende ser uma reflexão solta sobre as formas da história do design.

Richard Hollis, Graphic Design: a Concise History

Nesta altura, depois de falarmos do modo como o historiador cria a história, etc., será talvez necessário (embora picuinhas) assinalar que não sei se o episódio das gravações encenadas aconteceu realmente, apenas que é contado pelo designer e professor Keith Goddard na antologia Teaching Graphic Design History, editada por Steven Heller. (Deixei a referência em suspenso na esperança que o leitor tenha, também ele, hesitado entre considerar o caso como facto ou ficção.)

Mas porquê, já agora, fazer a análise crítica de uma pequena narrativa? A crítica de design não deve tratar apenas de objectos de design e dos seus criadores? Estudar estes episódios é importante porque o design não se limita à visualidade mas estende-se também ao discurso escrito e oral. Neste último caso, a forma específica que a oralidade assume – a sua performatividade – é também crucial. Há formas recorrentes, típicas e identitárias, de oralidade performativa dentro do design – a apresentação perante o cliente, a aula, a conferência, etc. Por esta razão, a história do design não se pode limitar às formas gráficas.

Na sua narrativa, Goddard descreve como concebeu e leccionou, no início da década de 1970, a cadeira de história no recém-criado curso de design no California Institute for the Arts. A experiência é apresentada num curto texto, duas páginas (incluindo bio) onde, muito ao gosto dos designers, a forma ecoa o conteúdo: trata-se do relato na primeira pessoa de um pioneiro do design louvando a eficácia dos relatos de pioneiros do design na primeira pessoa – nenhuma ironia ensombra de modéstia a literalidade do seu título: Pioneering Graphic Design History.

O uso da primeira pessoa gramatical no texto de Goddard dá a entender um testemunho autêntico, uma confissão, uma experiência original, primordial porque sincera. É como se a designação gramatical «primeira pessoa» fosse levada à letra e marcasse quem chegou primeiro a um território tornado novo por essa chegada – um pioneiro.

Quando um designer fala, quando apresenta o seu trabalho perante um cliente, perante alunos ou colegas, em aulas, Pecha Kuchas ou TedTalks, encena um ritual no qual, através de um relato pessoal, confessional, renova, à vista de todos, o mito do pioneirismo do design e do designer. (Uma das funções de qualquer mito é ligar o indivíduo e a comunidade a um tempo mítico.) O designer tem de evocar ritualmente o pioneirismo sempre que fala porque, dentro do design, quem pode falar, quem domina o discurso, é aquele que vem primeiro, o pioneiro. A autenticidade do seu testemunho é o que lhe autoriza esse estatuto, mas essa autenticidade é sempre uma construção, o resultado de se cumprirem certos pré-requisitos, que se podem observar em qualquer TedTalk: uma sinceridade de pacote construída através do uso da primeira pessoa, da partilha confessional de uma experiência pessoal, do uso dessa experiência para validar uma lição universal perante a audiência.

Porém, nem todas as experiências pessoais são aceites do mesmo modo. No caso do design, o testemunho só é validado pelo tipo de experiência que descreve: quem está autorizado a falar é o praticante, o profissional. Como nos mostram as gravações de Goddard, o historiador, o teórico, o teórico só se sente autorizado a falar simulando a voz do praticante, encenando o discurso directo mesmo onde ele não existe.

A voz tradicional do historiador do design é a de um veículo neutro, um medium para as vozes individuais dos pioneiros, articulando-lhes as vidas e as obras numa narrativa coerente que estimule os alunos – a função dominante da história tradicional do design é pedagógica, mas apenas no sentido em que o seu interlocutor idealizado são os alunos. Esta história não se ensina a si própria, apenas serve de intermediário entre o aluno e a experiência prática dos pioneiros. O melhor exemplo deste tipo de história é a History of Graphic Design de Philip B. Meggs. Não tenho dúvidas que o seu sucesso entre os designers se deve ao modo como o seu autor tenta articular numa totalidade coerente a voz, as anedotas e os incidentes da vida e obra de uma sucessão de pioneiros.

O historiador que recuse essa função, que não apague ritualmente a sua voz em nome da dos pioneiros, que fale na primeira pessoa, que seja tão coloquial como os praticantes, arrisca-se a ser acusado de impertinência, de vaidade. É o que sucedeu ao designer Herbert Spencer quando publicou em 1969 o não muito surpreendentemente intitulado Pioneers of Modern Typography. Apesar da premissa do livro ser uma reencenação gráfica das obras de pioneiros, Spencer cometeu a ousadia de não apresentar uma diferença clara entre o seu próprio discurso gráfico e o dos mestres. Era um livro onde o historiador usava o discurso gráfico dos pioneiros para ele próprio falar na primeira pessoa.

Herbert Spencer, Pioneers of Modern Typography.

O pioneirismo é o lugar da fala tradicional, dominante, do designer. Como tal, vê com alarme e escândalo discursos que presumam outras identidades. O auto-exame confessional presumido pelo discurso na primeira pessoa só é aceitável quando reforça um tipo muito específico de pessoa. Quando uma mulher se apropria da posição do pioneiro, por exemplo, o resultado é com frequência tão subversivo que chega a ser considerado exterior ao design.

Uma instância deste tipo de apropriação é a revista-poster Does It Make Sense? criada em 1986 por April Greiman. Convidada para conceber o número 133 da revista Design Quarterly, publicada pelo Walker Art Center, a designer evitou o tradicional portfolio, apresentando num poster desdobrável uma cosmogonia pessoal traçando as origens da criatividade. Sobre uma fotografia em tamanho real de si própria nua, dispôs uma cronologia começando no Big Bang (a criação original) e terminando numa versão idealizada dela própria, passando pela chegada à Lua e pela comercialização do primeiro Macintosh.

April Greiman, Does It Make Sense?, Design Quarterly #133

Na altura, o trabalho foi considerado «pornográfico, auto-indulgente e inapropriado». Faz agora parte do cânone, reproduzido em livros de história como os de Philip B. Meggs, de Richard Hollis ou de Stephen J. Eskilson. Rick Poynor dedica-lhe duas páginas e meia na sua história do design gráfico Pós-Moderno.♟ Todos estes historiadores descrevem a importância da revista-poster quase exclusivamente em termos técnicos (uso pioneiro do computador) e estilísticos (justaposição de camadas, imagens em bitmap, legibilidade complexa). Poynor é o único a apontar de passagem a obra como um sinal da crescente importância do próprio designer na «apresentação, percepção e consumo do design gráfico pós-modernos». ♦︎ Nenhum dá conta da sua característica mais evidente: é um ensaio visual autobiográfico onde uma designer expõe as suas motivações e dúvidas e – agregando isto tudo – a sua identidade como mulher. É, com efeito, uma reflexão gráfica sobre a experiência de Greiman enquanto mulher numa profissão maioritariamente masculina.

O excerto seguinte é longo. Decidi inclui-lo tal e qual, sem tradução sequer, porque me parece crucial ouvir a voz da própria designer a descrever o seu projecto (nem que seja para evitar mais outra camada de mansplaining):

When I was head of the design program at CalArts, I was suffering from bad criticism in the U.S., being called an airhead, and “let’s see if she’s in business in five years,” that kind of stuff. This was “the end of design.” My work was too personal. My “Does It Make Sense” piece for Design Quarterly arose from my own internal chatter and imaginations. I was at a crossroads in my early career. My work in the late ’70s and early ’80s was both infamous and highly acknowledged, contributing to a sort of early fame. At the same time, there was this backlash from the established New York male graphic design community, who were saying it wasn’t graphic design at all, it was fine art. So the chatter—the dialogue, that conversation in my own head—had to do with them saying my work was personal and not real, serious design.

I was going back and forth on what’s personal and what’s public, or what’s a personal agenda versus a client’s agenda. The title, “Does It Make Sense?” was me trying to reconcile with my abilities, my thinking, my skill sets. Did things have to make sense along the rigid line that was being drawn by that predominantly East Coast male community of designers who were twice my age? And in fact, was there a line? From there I began to ask, “What is creativity?” Aside from the biblical creation myth, if you go with the sciences and physics, you would say everything was created out of the Big Bang.

That’s the idea behind the whole running chronology of dates at the bottom of the piece. I cut ahead quite a few years to when the Macintosh got introduced, then there’s landing on the moon and other things that I thought were relevant to my personal timeline. The journey was about, “What’s personal and what’s professional design or commercial design?” That timeline was to help me give it sense.

[…] As I thought about what’s personal and not personal, I said, “What could I use to represent that?” And then I thought, I could use my person. I could literally use a portrait of myself as the canvas for representing the evolution of thinking.

Para Greiman, a revista-poster é portanto a resposta a uma acusação comum entre designers: a sua obra é demasiado pessoal para ser design a sério. Este tipo de crítica é desonesta porque, no fim de contas, não admite resposta que não seja ela própria pessoal. Mesmo que o objecto visado não o faça, é o juízo em si mesmo que coloca a discussão em território pessoal. Na sua essência, constitui um ataque ad hominem mal disfarçado porque procura deslocar a discussão do trabalho para a pessoa que o fez.

Greiman revela a vacuidade da acusação respondendo-lhe com um objecto de design onde tudo é pessoal: conteúdo, forma e mesmo o próprio processo de design. Foi feito com e sobre o corpo da designer, trazendo a própria condição de mulher das margens para o plano do design, para o centro da discussão. As reacções foram as típicas de quando uma mulher reclama a posse do seu corpo, apresentando-o nos seus próprios termos: foi acusada de pornografia; o modernista Massimo Vignelli perguntou-lhe quando ia chegar a parte de trás do poster. Greiman tinha produzido um trabalho que só podia ser criticado em público com o tipo de considerações sobre o seu corpo que uma mulher tem de suportar num meio masculino.

Classificar um trabalho de design como demasiado pessoal é uma acusação vaga que só é eficaz porque acumula uma dispersão de significados sem qualquer obrigação de os definir. Uma interpretação possível é que o trabalho não serve as necessidades do cliente ou do público mas as do próprio designer. Contudo, se há alguém disposto a pagar por ele, apreciá-lo ou discuti-lo, a acusação não faz qualquer sentido. O que se está de facto a dizer é que tal trabalho não deveria ter cliente, público ou impacto social. Tambémpode querer dizer simplesmente que foi feito por uma mulher. Como o design é uma actividade predominantemente masculina, uma obra que não seja feita em moldes masculinos será considerada uma tendência minoritária, no limite reduzida a uma só pessoa. As duas interpretações não se excluem. Juntas, dão a entender que o trabalho de Greiman não serve o seu cliente, o seu público ou a sociedade porque é feito por uma mulher, e que, pelas regras do design, o trabalho de uma mulher não deveria ter qualquer alcance.

Dizer de certo design que é demasiado pessoal também sinaliza um preconceito formal. Composições complexas, usando linhas de força em camadas, sem uma ordem imediatamente aparente ou cujo traçado sugira intervenção manual tendem a conotar um trabalho pessoal, por oposição a composições que demonstrem uma organização geométrica ortogonal (uma grelha explícita) e usem cores planas. Por outras palavras, pouca gente diria que um trabalho do Estilo Suíço Internacional é demasiado pessoal. Pelo contrário, muita gente classificaria desse modo o trabalho de David Carson, de Vaughan Oliver ou, claro, de April Greiman.

José Albergaria

Contudo, há situações que baralham esta correspondência entre forma gráfica e subjectividade do designer. A obra de José Albergaria, por exemplo, tem características formais que se encaixam dentro da ideia feita de um design pessoal, porém o próprio designer declara que em cada um dos seus trabalhos se tenta apagar a ele próprio em nome das necessidades dos seus clientes e dos contextos onde o trabalho surge. Sob este prisma, o trabalho de Albergaria só é pessoal na medida em que é personalizado, ou seja reflecte as características do cliente, não lhes impondo as do designer. É como um actor que se apaga a si mesmo para representar um papel. Por contraste, os designers do Estilo Internacional são como actores que representam todos os papéis de modo meticuloso mas genérico. Não só aplicam o mesmo modelo aos seus clientes como o procuraram impôr como a estratégia por defeito para o design em geral. Queriam, em suma, estabelecer-se como um sinónimo de design.

Esta ambição totalizante estende-se para além das formas gráficas e corresponde a uma hegemonia de valores que exclui por princípio vozes divergentes e minoritárias – daí a acusação comum de não chegarem sequer a ser design. Essas vozes, longe de serem apenas um estilo ou uma expressão meramente individual, correspondem frequentemente a identidades de género, raciais ou políticas. Como já vimos, isso é notório no caso de Greiman (que não é um exemplo isolado). Uma das características do chamado período Pós-Moderno do design foi o protagonismo sem precedentes alcançado por mulheres dentro do design gráfico, que se traduziu em posições de liderança em empresas e em instituições de ensino de topo: a própria Greiman, Katherine McCoy, Ellen Lupton, Paula Scher ou Sheila Levrant de Bretteville. Excluindo Scher, todas estas mulheres estavam ligadas à chamada Teoria Pós-Moderna, usando-a para reconstruir o design a partir de dentro em moldes políticos. No caso de Bretteville, há mesmo uma ligação directa ao feminismo activista e militante de Judy Chicago, com quem colaborava.

Esta politização Pós-Moderna do design constitui uma frente das chamadas Culture Wars, uma discussão acesa e duradoura que se prolonga até hoje sobre direitos e representatividade de mulheres e minorias étnicas e LGBT+. Porém, deste período politicamente intenso não sobrou quase nada na história do design. Tal como aconteceu com a revista-poster de Greiman, a época é descrita apenas em termos de estilo e de inovação tecnológica, esquecendo quase todo o seu conteúdo político. Aquilo que foi uma guerra pela inclusão de novas subjectividades dentro do design ficou para a história como uma predilecção por tons pastéis, degradés, letras muito espaçadas e designações pejorativas como Legibility Wars ou Cult of the Ugly, dando a entender um período dominado por preocupações superficiais de estilo e subjectividade pessoal.

O que tornou o Pós-Modernismo tão subversivo ao ponto de se recusar admitir a sua importância política foi ter tentado politizar o núcleo mais intocado do design, herdado do modernismo e que ainda hoje é o seu traço dominante: as estratégias de composição formal e o modo como se relacionam, de um lado, com a identidade do seu produtor e, do outro, com a sociedade geral. O Pós-Modernismo foi o primeiro movimento dentro do design a historicizar o modernismo – ou seja revelar que o design e os valores estéticos e éticos do modernismo não são equivalentes. Que esta equivalência não é universal nem eternos mas emergiu de uma conjuntura muita específica. Sugeria, em suma, que o cerne do design, a sua identidade por norma, era apenas um estilo, historicamente determinado.

É frequente afirmar-se que o design só aplicou superficialmente a Teoria Pós-Moderna. Contudo, essa mesma teoria caracterizou-se (e foi também criticada) por se concentrar em características tidas como superficiais do texto literário, tais como a sua disposição gráfica, ligando-as ao plano social e política – um tema presente em Barthes, Foucault, Derrida, Genette, entre outros. Este pensamento contrariava de modo frontal tanto as ideias feitas herdadas da tipografia como os princípios estabelecidos durante o modernismo e que se tinham tornado dominantes ao ponto de serem considerados sinónimos de design.

Contra a ideia modernista e funcionalista de que o design é uma linguagem universal da forma que só pode assumir um conteúdo político a partir de fora – por associação a contextos, clientes ou temas considerados políticos –, o Pós-Modernismo propunha uma política da forma, que desmantelava a diferença entre interior e exterior, entre o designer e o amador ou cliente. Punha assim em causa o núcleo mais sagrado da disciplina, propondo-lhe alternativas (um design feminino, por exemplo, ou um design queer) e revelando no processo a natureza por norma norte-europeia, branca e masculina do modernismo.

Essa é uma história em larga medida suprimida embora os seus vestígios continuem à vista de todos, sendo possível encontrar os seus traços nos próprios trabalhos, lendo os depoimentos na primeira pessoa de Greiman ou de Bretteville. Para a traçar, é preciso ver a sua política nos seus próprios termos e não nos das tendências conservadoras que ganharam estas guerras dentro do design. É preciso levar à pedra a máxima tantas vezes dita e tão poucas cumprida de que se pode fazer política através do design porque este é sempre político, como tudo é político, etc. O oposto é mais preciso: é muito difícil fazer um certo tipo política no design porque este, sobretudo quando reclama neutralidade e universalismo, já tem uma estrutura política que suprime ou pelo menos menoriza certas concepções políticas no seu interior, reduzindo-as a um subgénero.

Uma das maneiras como se opera essa supressão é através discurso sobre história de que falava no princípio deste texto. A insistência no pioneirismo do design é um mito identitário poderoso que pratica uma clivagem política que autoriza certas identidades enquanto dificulta outras. Para lhe escapar, são necessárias uma história e uma crítica que não se limitem a aplicar o discurso do pioneirismo a novas identidades mas que o desmontem e ultrapassem.

O paradoxo de uma história assente na articulação de pequenas narrativas de pioneirismo como a de Meggs (ou o do Pevsner antes dele) é o modo como se consegue produzir uma continuidade satisfatória para o design a partir de uma sucessão de génios individuais – que é como quem diz de pessoas que operaram uma ruptura com o modo como a sua actividade era praticada. No fim de contas, todo este pioneirismo, toda esta ruptura e inovação, traduz-se apenas em ser-se um veículo para um processo histórico linear e inevitável, um destino. A história do design de Meggs é essencialmente um descendente popular, inconsciente de si próprio, das ideias oitocentistas de Hegel.

Mas a história apresentada sob de uma narrativa ligando as experiências e anedotas pessoais de uma procissão cronológica de heróis é também ela oitocentista, reproduzindo as convenções literárias do século XIX. Um dos contributos mais interessantes do historiador Hayden White no seu texto seminal The Burden of History é a ideia que a disciplina da história, tal como é hoje, surgiu como um artefacto típico do século XIX, cumprindo funções muito específicas – como perceber as consequências da Revolução Francesa. Pelas circunstâncias do seu nascimento, assumiu as convenções formais da literatura da época: a apresentação cronológica, o uso de protagonistas individuais, etc. – ou seja, um estilo histórico tornou-se no formato por defeito da história. Enquanto a literatura avançou para um período moderno e depois pós-moderno, a história ficou bloqueada nos estilos do Romantismo ou quando muito do Realismo.

A implicação das ideias de White é simples mas tantalizante: o design, esse produto modernista das vanguardas do século, escreve a sua história com formatos oitocentistas. O típico livro de história do design é uma forma gráfica herdada do modernismo suíço organizando uma estrutura narrativa herdada do romantismo. White propunha uma história onde não só o protagonismo da figura heróica individual – do pioneiro – é posta de parte mas também a própria ideia de apresentação cronológica (um exemplo percursor de uma história que não se organiza de modo cronológico é o magistral A Cultura do Renascimento em Itália, de Jacob Burckhardt).

Nas palavras de White, que reproduzo no inglês original:

Both science and art have transcended the older, stable conceptions of the world which required that they render a literal copy of a presumably static reality. And both have discovered the essentially provisional character of the metaphorical constructions which they use to comprehend a dynamic universe. […]

The historian serves no one well by constructing a specious continuity between the present world and that which preceded it. On the contrary, we require a history that will educate us to discontinuity more than ever before; for discontinuity, disruption and chaos is our lot.

A história do design formou-se como disciplina em parte contra a história da arte, em parte contra a história da arquitectura, procurando sustentar a autonomia do próprio design em relação a estas duas áreas. Por exemplo, no texto que comentávamos mais atrás, Goddard criticava uma história do design feita pelo prisma da história da arte. Era isso que o fazia voltar às vozes pragmáticas dos pioneiros. Porém, na sua procura por autonomia, isolou-se também de desenvolvimentos historiográficos mais recentes. Tende portanto ainda para uma história baseada na imposição de continuidades – o que se percebe porque a identidade disciplinar do design é ela própria uma construção que visa unificar e pacificar um grupo desconjuntado e por vezes antagónico de tradições vindas da arte, da arquitectura, da tipografia, da informática, etc.

Não se trata de criticar esta continuidade por não corresponder à realidade, mas porque tende a excluir uma série de identidades e possibilidades políticas dentro da própria prática do design.



♟ Uso o termo Pós-Moderno em maiúsculas porque acredito existirem pelo menos dois pós-modernismos dentro do design. Um deles é o período Pós-Moderno, do qual falo neste texto e que ocorreu entre a década de 1970 e o começo da década de 1990, e um pós-modernismo mais longo que começou bastante cedo com a recusa apóstata do modernismo por parte de Tschichold na década de 1930 e com o Novo Tradicionalismo inglês. É desse Pós-Moderno mais recente que trata este texto. Tratei da diferença entre os dois no meu livro A Força da Forma.

♦︎ Rick Poynor, No More Rules: Graphic Design and Postmodernism, Laurence King, 2003, p. 99.