O curso era novo, o professor um designer. Não tinha qualquer formação em história. As aulas, decidiu, não podiam ser secas e académicas. Seriam pessoais, intrigantes, um tudo nada teatrais. Na primeira de todas, mostrou gravações em fita magnética de Marinetti, Lissitsky e Gropius, cada um lendo os seus manifestos num inglês eriçado de sotaque. Os alunos ouviram, com a atenção não diluída dos primeiros dias. No fim, revelou-lhes que ele próprio, disfarçando a voz, tinha gravado os textos. Estava convicto que a melhor forma de explicar uma área ainda nebulosa como o design gráfico seria através do testemunho dos seus melhores praticantes, e não através do conhecimento indirecto, teórico, dos historiadores.
Ao simular a voz dos pioneiros, o professor de história não estava apenas a enriquecer a experiência dos alunos, mas a falsificar por instantes, nem sequer um documento, porque os textos existiam, mas a sua autenticidade – a ligação material directa entre esse documento e a pessoa que o escreveu, neste caso o registo da sua voz. Ao instalar dentro da história do design este grau ínfimo, superficial, de ficção, o professor estava, provavelmente sem o saber, a chamar a atenção para um problema importante, já colocado por Michel Foucault ou Hayden White: o historiador nunca se limita a apresentar documentos de modo neutro mas, através da sua actividade, constrói-os.
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Escrever faz-se com o corpo e o sítio onde se está
A quarentena confirma que a história do design é uma tarefa dolorosamente material.
Mudei de casa vai fazer dois anos, porque precisava de espaço para os livros e porque nos tornámos pais. A Susana já insistia há muito na sua vontade de morar perto do centro, numa casa maior, mas tornava-se cada vez mais difícil encontrar uma. Mandava-me todos os dias anúncios de sites de imobiliárias. Eu resistia, porque ainda tinha a crise bem presente. Não tinha a certeza de termos dinheiro.