Alisar a curva

Mit Press (https://thereader.mitpress.mit.edu/flattening-the-coronavirus-curve-is-not-enough/)

É bem possível que a imagem gráfica que nos vai ficar desta epidemia do Covid-19 seja esta, a de duas curvas sobrepostas, uma elevando-se alta e estreita, a outra longa e achatada. A primeira curva ilustra a progressão livre do contágio, manifestando-se num pico de casos que ultrapassa os recursos do sistema de saúde. A segunda mostra como, através do isolamento social e da quarentena auto-imposta, se pode retardar a evolução da epidemia de modo a que as ocorrências se espalhem ao longo do tempo, mantendo-se abaixo das capacidades do sistema saúde. Em suma: ilustra, de modo simples, directo e eficaz, duas alternativas, duas estratégias, argumentando a favor de uma delas.

O gráfico, publicado em jornais, programas de Tv, instagrams, tweets, ou posts do facebook, pode aparecer reduzido aos seus ingredientes básicos, duas linhas, duas superfícies, ou pode ser mais sofisticado, combinado com legendas, desenhos, pequenas narrativas ou animações.

Banda desenhada de Siouxsie Wiles e Toby Morris

Parte do que o torna numa imagem memorável não é apenas a eficácia do seu conteúdo ou a sua estética, mas a simples sobrevivência, a disponibilidade para ser reproduzido nos ambientes mais adversos, da forma mais amadora e com as ferramentas mais rudimentares. Usado como infografia num telejornal da SIC, o diagrama foi distorcido ao limite, mantendo, ainda assim, a coesão e a urgência.

Telejornal Sic 17.2.2020.


O seu sucesso depende também da capacidade generalizada por parte do público para perceber de modo imediato uma convenção que torna visível, gráfico, o padrão formado por certas ocorrências ao longo do tempo. Interpretar estes diagramas faz parte das competências mínimas que se espera de um cidadão na sociedade actual. Porém, pouca gente os saberia interpretar antes do Iluminismo, quando se começou a usá-los como instrumento de governo – o que significa que estas imagens já não eram empregues apenas por políticos, cientistas e técnicos mas enquanto argumentos em discussões públicas alargadas. São imagens concebidas com o fim expresso de sustentar debates na arena pública – constituem, de facto, uma contrapartida gráfica da esfera pública burguesa de que falava Jurgen Habermas.

De acordo com as historiadoras do design Johanna Drucker e Emily McVarish:

O design de informação ganhou sofisticação [durante o Iluminismo], à medida que as tarefas administrativas de negócios e governos seculares dependiam cada vez mais de métodos estatísticos. As vantagens de apresentar informação em formas visuais condensadas promoveu o uso de tabelas, gráficos e diagramas. Um aspecto das tremendas mudanças sociais que ocorreram durante a Época das Luzes foi o desenvolvimento de formas de cultura administrada. A estrutura complexa da administração dos negócios e serviços públicos dependia da abstracção e análise de informação. Esta abstracção tornou as estatísticas graficamente apresentáveis. O efeito destas visualizações foi o de emprestar a autoridade da ciência empírica e dos seus métodos à gestão de situações humanas e de assuntos culturais. Os factos estatísticos apresentavam uma face distinta da de pessoas individuais – decisões tomadas sobre a base da análise de informação nem sempre são compatíveis com valores de compaixão.✄

Tornou-se portanto habitual não apenas a discussão em torno de decisões públicas e privadas através de diagramas, mas o desenvolvimento de novas instâncias de representação gráfica adaptadas a situações específicas – um exemplo evidente é a mobilização da população no combate a pandemias. O diagrama das duas curvas não é o primeiro exemplo do uso de um gráfico com este fim.

Em Londres, entre 31 de Agosto e 29 de Setembro de 1854, uma epidemia de Cólera matou 616 pessoas. À época, não se conhecia as causas da doença – alguns suspeitavam até dos vapores que se elevavam das sepulturas dos mortos da Peste Negra. O surto afectou sobretudo a zona de Broad Street, o que levou o médico John Snow a suspeitar de um fontanário público. Os testes que fez à água foram inconclusivos, pelo que optou por métodos estatísticos para determinar o foco da doença. Marcou num mapa a quantidade de mortos em cada casa, representados por pequenos traços paralelos à fachada. Os casos acumulavam-se visivelmente junto à bomba de água de Broad Street. O diagrama convenceu as autoridades a retirar a alavanca do fontanário, impedindo a sua utilização.

John Snow, diagrama do surto de Cólera de 1854, Londres.

O surto terminou rapidamente. É possível que a remoção da alavanca não tenha sido decisiva para travar a epidemia, que já se encontrava na sua fase descendente quando se tonou a decisão, mas estava provada a origem da doença.⚑

Quando Snow produziu o seu diagrama, já era comum o uso de gráficos como ferramenta de governo. Antes do fim do século XVIII, William Playfair (1759 – 1823) tinha concebido já muitos dos diagramas estatísticos mais comuns – incluindo o gráfico de linhas usado no esquema do Covid-19.

William Playfair, Commercial and Political Atlas, 1786.

A inspiração de Playfair tinham sido as timelines biográficas inventadas por Joseph Priestley em 1765, comparando a duração de vida de figuras históricas. É o antepassado dos interfaces de muitos programas de edição de vídeo ou de som.

Joseph Priestley, 1765.

Tudo isto não seria possível sem o trabalho do matemático Nicolau Oresme que, no século XIV, descobriu a possibilidade de representar através de desenhos as flutuações no movimento de um objecto ao longo do tempo. O processo seria redescoberto muito mais tarde por Galileu e aperfeiçoado por Newton.

Nicolau Oresme

O diagrama das duas curvas descende de modo directo destas imagens. Não foi produzido por um único cientista, designer ou ilustrador, mas resultou de um aperfeiçoamento colectivo, de uma discussão colectiva alargada. Antes de se tornar um símbolo da pandemia do COvid-19, Já circulava há mais de uma década em versões às quais ainda faltava ainda a linha tracejada indicando a capacidade do sistema de saúde.

Um exemplo de 2007 (https://stacks.cdc.gov/view/cdc/11425)

Segundo o New York Times, a linha foi acrescentada por Drew Harris, um analista da Universidade Thomas Jefferson em Filadélfia. Ao ver uma versão do esquema num artigo do The Economist, Harris lembrou-se de ter leccionado anos antes uma acção de treino sobre situações de pandemia, durante a qual os alunos tiveram dificuldade em perceber as implicações do gráfico. Para o tornar mais claro, o analista acrescentou a linha tracejada. Perante a pandemia do Covid-19, Harris divulgou uma nova versão no twitter e no linkedin.

O gráfico, nas suas várias versões, foi reproduzido nas redes sociais e meios de comunicação social, constituindo um símbolo poderoso da estratégia de ficar em casa e de reduzir os contactos sociais, evitando a propagação da doença. Não duvido que muita gente se tenha decidido pelo isolamento por causa deste diagrama.


Notas:

✄ Johanna Drucker e Emily McVarish, Graphic Design History – A Critical Guide, Pearson, 2013, p. 94.

⚑ Edward R. Tuft, Visual Explanations, Graphics Press, 1997, p. 27-33.