Forensic Architecture, ou uma guerra de imagens no limiar do design

Investigação sobre um assassinato por drone em Miranshah, no Waziristão do Norte.

A 12 de Fevereiro deste ano, o departamento de Homeland Security dos Estados Unidos da América classificou o arquitecto britânico de origem Israelita Eyal Weizman como um risco para a segurança do país. O seu visto de entrada foi revogado, impedindo-o de viajar para a Florida, onde estava a ser montada uma retrospectiva do colectivo que fundou, os Forensic Architecture. Quando pediu um novo visto na embaixada norte-americana em Londres, foi informado que um algoritmo o tinha identificado como ameaça. É provável que um cruzamento entre as viagens que fez, os locais que visitou e as pessoas e organizações com quem contactou tenha desencadeado a decisão.

Criados em 2010, como um núcleo de investigação da Goldsmiths (Universidade de Londres), os Forensic Architecture especializam-se na criação de técnicas experimentais para investigar crimes de guerra, em grande medida baseando-se em métodos e tecnologias de projecto oriundas da arquitectura. O colectivo inclui arquitectos, artistas, cineastas, jornalistas, cientistas e advogados.☀︎ Já abordaram casos relacionados com a crise de refugiados no Mediterrâneo, com a ocupação dos territórios Palestinianos, com a tortura de prisioneiros pelo regime de Bashar Al-Assad na Síria, com a investigação de crimes sobre populações civis no Guatemala. Em menos de uma década, o seu trabalho foi apresentado perante tribunais penais internacionais e na Assembleia Geral da ONU. Figurou também em exposições e bienais de arte, arquitectura e design, a mais notória sendo a Whitney Biennial de 2019, onde apresentaram provas de que a empresa Sierra Bullets, em parte propriedade de Warren Kanders, vice-presidente da bienal, tinha fornecido munições à Israeli Defense Force (IDF) usadas contra acções de protesto na faixa de Gaza, constituindo um provável crime de guerra.

Era este percurso que um algoritmo tinha classificado como ameaçador. As movimentações e a rede de contactos de um investigador é, evidentemente, bastante semelhante à de quem investiga – do lado da recolha bruta de dados, confundem-se vítimas, criminosos e investigadores. A própria condição de vítima é com frequência obscurecida de modo tático. A vítima civil de um acto de guerra ilegal é, por exemplo, apresentada pelo agressor como um terrorista. A revogação do visto de Weizman constitui um exemplo de obscurecimento tático, onde a própria decisão é remetida para a instância inumana representada pelo algoritmo, cujos critérios ou procedimento não são públicos.

Uma das investigações dos Forensic Architecture focou-se na campanha norte-americana de assassinatos de guerrilheiros Talibã através de drones na fronteira paquistanesa com o Afeganistão entre 2004 e 2014. Parte da ofensiva foi feita em segredo, recorrendo a mísseis concebidos com o objectivo de assassinar pessoas dentro de edifícios sem afectar a estrutura destes. Os projécteis entram pelo telhado e têm uma detonação temporizada de maneira a explodir num andar específico. O furo de entrada tem uma dimensão que passa despercebida nas imagens recolhidas por satélite – o que, associado a uma proibição de recolha de imagens na zona, dificulta a investigação destes ataques, necessariamente feita à distância, dadas as restrições de circulação.

No caso específico de um bombardeamento em Miranshah, no Waziristão do Norte, a investigação partiu de vídeos recolhidos e extraídos clandestinamente da região. O colectivo começou por localizar o evento com a ajuda de imagens de satélite e, cruzando essa informação geográfica com os detalhes patentes nos próprios vídeos, reconstituiu os locais dos ataques usando software CAD. Pelas imagens dos vestígios deixados pelos estilhaços nas paredes determinaram a posição da deflagração dentro do compartimento onde ocorreu. As áreas de parede sem estilhaços marcavam, em silhueta, as posições relativas das vítimas. Segundo Weizman:

«as paredes funcionavam como uma película fotográfica, com as pessoas expostas à explosão registradas sobre elas de modo semelhante ao de um negativo exposto à luz. […] As paredes interiores do compartimento […] funcionavam assim como dispositivos de gravação. Era por um processo de dupla fotografia – os frames do vídeo […] eram fotografias de uma fotografia – que os corpos humanos destruídos pelo ataque do drone se tornavam presentes.»✈︎

Cada caso dos Forensic Architecture é investigado com o máximo de rigor possível, obedecendo não apenas às exigências do método científico mas às dos enquadramentos legais das instituições judiciais e deliberativas onde podem ser apresentados – a estas exigências soma-se, como é evidente, as obrigações derivadas da sua circulação em exposições e publicações ligadas à arte, arquitectura ou design. É um brio que se reflecte na escrita e nas apresentações públicas de Weizman, cuja argumentação recorre tanto aos dados legais que determinam a resolução máxima de uma imagem por satélite em zonas de conflito como aos trabalhos de George Didi-Huberman sobre a imagem.

O próprio nome do colectivo foi escolhido de modo tático, enunciando um conjunto de filiações, de apropriações e de subversões. O adjectivo «Forensic» não remete apenas para o significado mais evidente, a investigação científica de crimes, mas, como explica o próprio Weizman, para o termo em Latim forensis, «aquilo que diz respeito ao fórum». O fórum romano era um local onde se vendiam, discutiam e apresentavam objectos, ideias, tópicos postos a discussão:

«coisas pequenas, como moedas ou adagas, podiam ser fisicamente expostas, mas coisas abstractas, distantes ou demasiado grandes, tais como rios, territórios, guerras, cidades, faminas ou impérios, precisavam de ser tornados presentes pelo poder da representação ou da demonstração aural – aquilo que Quintiliano designava pelo tropo retórico da “prosopopeia” – a atribuição de uma voz a algo inanimado»✟

A prosopopeia, segundo Quintiliano, podia evocar os mortos, e dar voz a cidades ou Estados, algo que Weizman acredita ter uma ligação directa com a actividade dos Forensic Architecture. O colectivo usa-a para «animar objectos convertendo-os em dados ou imagens e situando-os dentro de uma narrativa».

O objectivo não é apenas apresentar «os factos mas manifestar uma realidade invisível perante os olhos do público.»⚖Essa realidade invisível é, em muitos dos casos investigados, o efeito de uma retórica estatal deliberadamente concebida para obscurecer situações de legalidade duvidosa. Como parte da narrativa das autoridades norte-americanas de negação oficial dos ataques de drones no Paquistão, as mortes eram atribuídas a explosões acidentais durante o fabrico de bombas destinadas a ataques terroristas. Como num policial, a arma do crime e a própria circunstância do assassinato eram aperfeiçoadas e escolhidas com o propósito de culpar as vítimas, justificando retroactivamente o assassinato, que em muitos casos era decidido unicamente através da análise de padrões de comportamento, sem que se conhecesse a identidade do alvo:

«a análise de padrões praticada pela CIA no Paquistão […] processa um conjunto de dados sobre a vida das pessoas – por exemplo, o seu movimento em certas estradas é considerado “tóxico” pelo Pentágono, telefonemas para certos números, congregações em determinados edifícios religiosos – para encontrar padrões que possam “corresponder a uma ‘assinatura’ [signature] de comportamento pré-identificado que os Estados Unidos associam a actividade militante”. Até 2015, quando o processo, referido como “signature strikes” foi oficialmente descontinuado, a CIA assassinou pessoas que um algoritmo determinou constituírem um “risco iminente”, sem que as suas identidades ou nomes fosse sequer conhecido.»☼

Um algoritmo semelhante impedia agora o acesso de Weizman aos Estados Unidos, fazendo do investigador a vítima de um dos processos que tinha ajudado a trazer à luz do dia.

A actividade dos Forensic Architecture é com frequência menosprezada como sendo trabalho político para encher o olho em bienais, sem consequência substantiva – parafraseando uma citação erradamente atribuída a Mark Twain: «se fizesse diferença, seria ilegal». A classificação de Weizman como um risco de segurança é uma confirmação sinistra da importância dos esforços do colectivo – que, de resto, colabora regularmente com ONGs, investigando potenciais crimes de guerra em curso, ajudando à identificação de massacres e assassinatos.

A apresentação do seu trabalho em eventos culturais não deriva apenas da missão de tornar visível e pública toda uma dimensão obscura do que Weizman designa como uma violência praticada no limiar da detectabilidade.🔫 Por convenção, a investigação e acção forense cabe ao Estado, mas neste tipo de actos de violência, é necessariamente protagonizada por grupos de activistas, virando contra o Estados técnicas que os Forensic Architecture designam como contra-forenses:

«Nos conflitos contemporâneos, tanto a morte como a sua investigação são práticas centradas na imagem. Porém, investigar ataques de drones através da análise de imagens de satélite inverte os princípios fundadores da investigação forense estatal, tal como tem sido praticada desde o século dezanove, nomeadamente que, para deslindar o crime, o investigador, o polícia, precisa de conseguir ver e saber mais que o perpetrador, o criminoso, de ter acesso a melhores imagens e dados históricos e comparativos. […] No nosso caso, contudo, é o assassino que teve acesso a melhores ópticas, dados e informação do que os investigadores.

Esta inversão aninha-se numa outra: no trabalho policial, o Estado investiga os crimes de indivíduos, mas aqui o Estado é o alegado criminoso [.]»☂

Um dos focos cruciais do trabalho dos Forensic Architecture é portanto a imagem, desenvolvendo técnicas inovadoras, tanto na análise crítica de imagens como na produção de imagens e de narrativas visuais que são de particular interesse no universo das artes e do design.

A imagem tem neste momento um papel sem precedentes na política e na discussão pública. Até ao advento dos smartphones, a produção e a discussão em torno das imagens era domínio de especialistas. Durante os séculos XIX e XX, apenas artistas ou fotógrafos tinham as competências e os recursos para produzir um discurso público sustentado em imagens. A resposta crítica a esse discurso era, na sua grande maioria, feita, não através de imagens, mas da palavra oral e escrita. Com as redes sociais associadas ao smartphone, tornou-se possível um discurso público generalizado tendo como base a imagem. Através de memes, de gifs, de stories, pessoas sem uma formação especializada na produção de imagens produzem quotidianamente um discurso centrado na imagem.

Quando Marshall McLuhan cunhou a expressão «a Aldeia Global», não se estava a referir a um mundo reduzido à escala de uma aldeia. McLuhan estava a falar das diferenças entre a aldeia enquanto sociedade analfabeta centradas na oralidade e a cidade enquanto sociedade centrada na escrita. Com a chegada da rádio e do telefone, as sociedades urbanas assumiam as características orais de uma aldeia global. Com a internet e os smartphones, o discurso através da imagem tornou-se de tal modo rápido e generalizado que se pode talvez falar de um uso da imagem que se aproxima da oralidade, no sentido em que é uma comunicação performativa, centrado não apenas na imagem estática mas em vídeos de curta duração, e nos gestos, roupa ou contexto dos seus protagonistas.

Este discurso pela imagem assenta em motores de busca centrados na imagem, em acervos pesquisáveis por palavra chave, acessíveis através de menus, enquanto se escrevem mensagens ou se posta numa rede social. 👍🏻Estes recursos podem ser usados tanto para a investigação e vigilância de cidadãos por parte do Estado, como por activistas para investigar abusos como crimes de guerra ou atentados ambientais. Parte do trabalho de colectivos como os Forensic Architecture baseia-se em ferramentas corriqueiras de pesquisa através de imagem, de geolocalização, de navegação de mapas através de streetview, etc. É um modo de investigação que se tem generalizado. Outro projecto de investigação centrado em imagens surgido na última década – e colaborador regular com os Forensic Architecture – é o website de jornalismo de investigação Belling Cat, fundado em 2014 para investigar suspeitas de crimes de guerra por parte do regime de Bashar Al-Assad na Síria.

O surgimento em simultâneo destas e de outras iniciativas de investigação centradas sobre o que já foi definido como sendo a fotografia social,📸deriva claramente de um contexto onde estão disponíveis recursos técnicos que sustentam um discurso centrado na imagem. As velhas discussões sobre a relação entre imagem e verdade ganharam urgência em grande medida porque se ganhou a consciência que a discussão pública e a decisão política são protagonizadas quase exclusivamente por pessoas formadas na área da palavra e não da imagem – desde advogados a historiadores, passando por jornalistas. A dificuldade em prever ou analisar eventos como a eleição de Trump é sintoma de uma incapacidade generalizada para lidar com a imagem enquanto discurso público, um ponto literalmente cego que foi explorado tacticamente pela nova extrema direita e por potências como a Rússia de Putin.

O advento deste discurso público através da imagem apanhou de surpresa a própria área disciplinar do design, que de modo geral o encara como uma prática primitiva e não profissional que deve ser evitada ou, no caso de intervenção, corrigida e eliminada. Em acréscimo, os últimos vinte anos assistiram a uma viragem tipográfica e textual do design gráfico. A tipografia tornou-se num sinónimo da área. Um trabalho de design gráfico que não contenha texto é considerado com frequência um sinal de diletantismo ou da infiltração daquilo a que os designers chamam «arte». Porém, é fácil encontrar exemplos de objectos maiores da história do design usando uma visualidade desprovida de texto ou onde o texto assume um papel secundário (existe, por exemplo) um sem número de photo-books ou photo-ensaios onde o texto é residual. Mesmo algo tão básico como construir um objecto editorial ou um cartaz sem recurso a texto é uma competência que se perdeu. Assume-se que design sem texto – num poster, por exemplo – não comunica.🀆

A designer e editora Sofia Gonçalves lançou recentemente a hipótese da existência de áreas que são impossuíveis pelo design, situações ou contextos onde um designer não pode intervir sem abandonar os métodos, as ferramentas e sobretudo a sua identidade como designer. Deu como exemplo o placard de protesto ou os memes, que tendem a perder quase toda a sua eficácia quando redesenhados de acordo com as regras ou a história do design.🚷 A imagem arrisca tornar-se numa dessas áreas impossuíveis.🖼
Iniciativas como o Belling Cat ou os Forensic Architecture imaginam e ilustram um território invisível não só ao design mas a muita da discussão pública contemporânea.

Embora o seu nome indique uma ligação directa com a arquitectura, os Forensic Architecture voltam-na do avesso, usando métodos de projecto não como modo de planear graficamente edifícios mas de produzir e analisar imagens. Levantam com isso questões sobre a própria natureza da arquitectura, fazendo parte de uma ambição, que acompanhou sempre esta disciplina, para aplicar os seus princípios e métodos além do simples planeamento de edificações, intervindo directamente na sociedade, reconfigurando até o modo como se pratica política. É uma aspiração que vem de Saint Simon, passa por Pugin, Ruskin ou Morris, Le Corbusier, Gropius ou Moholy-Nagy, chega aos Archizoom. De acordo com a historiadora Alexandra Midal, uma das consequências desta vontade de arquitectura como um modo de intervenção total, como uma cultura total de projecto, foi precisamente o design – não o design como disciplina, como uma especialização, mas o design como uma cultura de projecto cujo propósito era conceptualizar a intervenção da arquitectura em outras esferas para além da edificação. O design permitia ao arquitecto intervir desde a escala do talher ou do livro ao do hábito social. Esta era a ideia de design patente nos textos fundadores da disciplina Pioneers of Modern design, de Nikolaus Pevsner, e Mechanization Takes Command, de Sigfried Giedion. O design só começaria a reclamar uma autonomia disciplinar bastante mais tarde com o trabalho crítico de Reyner Banham ou do designer Joe Colombo. ♥︎

A actividade dos Forensic Architecture aproxima-se desta ideia de uma cultura geral de projecto, usando métodos projectuais não apenas para analisar edifícios enquanto cenas do crime mas como um modo público de propor e discutir políticas. Constitui, com efeito, um dos desenvolvimentos mais interessantes desta ideia perene do design como cultura de projecto. Porém, se esta noção acompanha a arquitectura e o próprio design ao longo de todo o seu percurso enquanto disciplinas, tal não significa que seja uma constante ahistórica. É crucial perceber as suas inflexões em cada época ou local. Os Forensic Architecture filiam-se de modo muito directo numa tendência para uma terciarização da arquitectura e do design – da passagem da produção de objectos para serviços de recolha de dados e de gestão e administração de recursos que se estendem para além do objecto edificado ou projectado. A tendência manifesta-se claramente em desenvolvimentos como o design thinking, onde a cultura de projecto é usada como paradigma para a gestão de recursos humanos. É patente também no Critical Design, um dos movimentos mais característicos das duas últimas décadas, oriundo do design industrial e depois aplicado em áreas como o design gráfico. A sua ambição é conceptualizar e concretizar uma prática do design que seja em si mesmo crítica.

Com isto não estou a dizer que os Forensic Architecture se enquadrem dentro do Critical Design, apenas que ambos são efeitos de um contexto histórico muito particular, um período no qual uma cultura de projecto terciarizada procura modos de intervenção política que se manifestam através de um discurso crítico que não assenta na escrita mas numa pragmática tornada crítica – outro exemplo, é o recentramento da curadoria enquanto forma prática de crítica. Também nesta instância se pode falar de uma terciarização da actividade artística, onde a administração de artistas, de objectos, da sua circulação e dos seus arquivos se tornaram numa estética muitas vezes descrita como um tipo de crítica.

É revelador que, ao traçar a origem do nome dos Forensic Architecture, Weizman invoque como filiação os arquitectos forenses que inspeccionam edifícios em casos de litígio, em geral ao serviço de seguradoras:

«Porque os arquitectos forenses são os estudiosos do falhanço arquitectónico e porque o seu serviço é com frequência mobilizado contra os projectistas em prol de clientes, não são particularmente populares dentro da arquitectura. A prática ocupa um lugar marginal na paisagem da profissão, sendo ignorada quase por completo nas escolas de arquitectura de todo o mundo. Para os arquitectos, a inspecção de edifícios pode parecer uma prática demasiado ordinária e sem imaginação, mas os inspectores sabem algo fundamental sobre construções que é comum ser ignorado pelos arquitectos: os edifícios não são entidades estáticas. As suas transformações não são aberrações de um estado ideal incarnado nas linhas de um desenho, mas são inerentes a toda a estrutura construída.»🔎

Esta passagem é notável na medida em que revela um potencial onde habitualmente se vê apenas um abastardamento da prática da arquitectura: na tarefa burocrática, administrativa do inspector que audita edifícios, Weizman descortina as possibilidades do projecto para além das intenções expressas do seu autor. O edifício deixa de ser a expressão de uma vontade individual, fixa na matéria, para se abrir ao mundo, ao tempo, às pressões, agressões e discussões do mundo.

Weizman entrevê assim num local e num protagonista inesperados (a auditoria e o arquitecto forense) uma solução para o problema do que será uma prática projectual crítica. Uma das limitações do Critical Design é talvez o de procurar a sua criticalidade sobretudo no modo clássico de exercer o design – como uma profissão liberal ao serviço de clientes. A prática dos Forensic Architecture sugere outras possibilidades: a crítica ou até mesmo a investigação como um serviço cívico, exercido no cruzamento da academia, do jornalismo, da advocacia e, claro, da cultura de projecto.

É difícil averiguar se existem possibilidades semelhantes dentro do design gráfico. As tendências de Critical Design têm investido na ideia de um design especulativo ou ficcional, o que tem a virtude louvável de desmantelar o pragmatismo tradicional que insiste no «mundo real» como o único território possível onde o designer pode exercer. Esse «mundo real» acaba por ser ele também uma estreita construção onde pouco se pode fazer para além do que já se fazia – elaborar e concretizar projectos para clientes. Porém, ao tentar conciliar uma postura crítica e política com o papel clássico do designer, o Critical Design tende a salvaguardar esse papel, isolando-o da crítica e despolitizando-o – a prática do design fica como um vestígio desse «mundo real».

Aquilo que torna política a prática dos Forensic Architecture não são apenas os temas, os territórios e os clientes que escolhem. Acreditar que arquitectura ou o design só podem ser políticos a partir destas escolhas exteriores é o erro típico mas também a peça fundamental da ética do Funcionalismo Modernista – é outro modo de dizer que o design ou a arquitectura em si mesmos são neutros e a sua política, a existir, está no seu exterior. Os Forensic Architecture são políticos porque participam de uma reinvenção radical da prática da arquitectura, tornando-a crítica de modos novos, usando a cultura de projecto para investigar novas modalidades de imagem, de violência ou de política.


Notas:

☀︎ Eyal Weizman, Forensic Architecture – Violence At The Threshold of Detectability, Zone Books, 2018, p. 9.

☼ Id., p. 32.

🔫É esse o subtítulo do livro de Weizman sobre o colectivo (ver nota ☀︎).

☂ Id., p.30.

👍🏻Kim de Groot acredita a economia contemporânea da imagem «se baseia na administração, indexação, controle, supervisão, regulação, localização e distribuição de imagens. Em suma, [de Groot refere-se] a isto como gestão de imagem [image management]. A gestão de imagem implica uma passagem das imagens como representação, para a aplicação de imagens como objectos produtivos em rede [productive networked objects].[…] Enquanto a fotografia clássica captura um pedaço de relaidade, a imagem em rede produz e gere uma realidade de informação, tags, dados, pessoas, etc.» Kim de Groot, Image Management, Onomatopee & Jan van Eick Academie, 2012.

✈︎ Eyal Weizman, id., p. 40.

✟ Id., p. 65.

⚖Id. Ibid.

📸Nathan Jurgenson, The Social Photo: On Photography and Social Media, Verso Books, 2019.

🀆 http://www.veroniquevienne.com/article/who-still-cares-about-posters

🚷Foi na conferência Terrenos Baldios e Territórios Intransponíveis: o Design de Comunicação entre a Realidade e a Ficção, um dos painéis do ciclo Imagem no Pós-Milénio, dentro da Porto Design Biennale 2019.

🖼 Num júri de design de livros, um dos meus colegas recusou numa primeira instância photo-books sem palavras «porque não eram design».

♥︎ Alexandra Midal, Design by Accident: For a New History of Design, Sternberg Press, 2019.

🔎Eyal Weizman, id., p. 51.