
O livro Moer, de Ana Jotta e Ricardo Valentim, com design de Márcia Novais,☼ ganhou uma das medalhas de Bronze da fundação alemã Buchkunst para o melhor design de livros de todo o mundo. O galardão mais elevado, o Goldene Letter, foi atribuído ao livro suíço Almanach Ecart. Une archive collective, 1969-2019, de Elisabeth Jobin, Yann Chateigné, com design de Dan Solbach.
O livro de Novais é uma das dezassete publicações seleccionadas para o prémio Design de Livro 2019, promovido pela Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB), de cujo júri fiz parte. Um dos objectivos do concurso da DGLAB é precisamente obter uma selecção do design nacional com o objectivo de concorrer por sua vez ao prémio alemão. Tanto quanto sei, é a primeira vez que um livro português atinge os lugares cimeiros – edições do ilustrador Bernardo Carvalho já tinham recebido menções honrosas.
Fico particularmente satisfeito com a atribuição deste galardão. A decisão de um júri é colectiva mas não escondo que um dos meus objectos favoritos a concurso foi o Moer – que mostrei também na minha exposição A Força da Forma, durante a Porto Design Biennale ’19. A sua inclusão nos seleccionados foi bastante discutida, dado ser um livro que se baseia de forma aparentemente directa num design de Sebastião Rodrigues.
Não é, contudo, uma cópia directa, mas uma reencenação cuidadosa, plena de nuances. É uma obra editada pela própria Gulbenkian mas, pela intenção dos artistas e da designer, concebido para ser um título parasita de uma colecção à qual não pertence. Cruza de modo interessante o esquema gráfico Novo Tradicionalista de Sebastião Rodrigues com o vocabulário de tendências gráficas de edição de arte deste século. Não foi impresso na gráfica habitual onde se produz essa colecção, pelo que se trata, também, de um meticuloso trabalho técnico de reverse engineering. É também um trabalho onde é invertido um esquema recorrente na história do design português: desta vez, e ao contrário do habitual, é uma mulher que se apropria do trabalho de um dos heróis do cânone fazendo dele uma nota de rodapé da sua própria obra. Ao recuperar o trabalho de Rodrigues, sem dúvida o designer mais marcante da disciplina em Portugal, Moer enquadra-se naquilo que já classifiquei como sendo o recentramento modernista do design português que ocorreu nas duas últimas décadas.
É importante distinguir esse recentramento de um movimento semelhante mas até certo ponto oposto de recuperação da tradição tipográfica e do design de livro clássico. No primeiro campo, temos obras como Moer, a produção de Marco Ballesteros, a edição e design de Sofia Gonçalves, que se filiam num recentramento modernista que ocorreu internacionalmente e que inclui o trabalho dos Dexter Sinister, Will Holder, entre outros. Neste caso, é recuperada uma atitude moderna de experimentação processual sobre os limites e a própria identidade da disciplina.
No segundo campo, encena-se um tradicionalismo centrado, não no design mas na tradição tipográfica que o antecedeu e à qual o design moderno se opôs. Deste lado, encontramos objectos interessantes como o catálogo Imprimere, de Rúben Dias e Sofia Meira, que venceu o terceiro prémio do Design de Livro do DGLAB deste ano, cujo design é muito competente mas corre o risco de se valorizar sobretudo pela encenação pedagógica de técnicas de gráfica. Nesta categoria, de um «tradicionalismo de gráfica», poderia ser também incluído o trabalho de João Bicker ou de Paulo Heitlinger. Nas melhores instâncias, alcançam-se objectos cuidados e competentes, enquanto nas piores assume-se que uma ortodoxia tipográfica (que em muitos casos não passa de um autoritarismo kitsch) é o único modo correcto de praticar o design.
Foi em parte para servir de contrapeso a essas derivações historicistas do design português nestas primeiras décadas do século XXI que decidi encetar este blogue – dizia Michel Foucault que contra o historicismo o remédio é fazer a História.☀︎ Parece-me que o design historicista actual tem agarrado a si a sua própria proposta de história que, como é evidente, cumpre as funções habituais de ser um recurso ao serviço de interesses muito presentes. O design do recentramento modernista, por não se dispor tão imediatamente a invocar uma tradição, corre o risco de não ter quem lhe saiba ou queira fazer a História.
Notas:
☼ Novais é designer na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, onde foi minha aluna.
☀︎ «History protects us from historicism – from a historicism that calls on the past to resolve the questions of the present.» Michel Foucault, Space, Knowledge and Power, in Paul Rabinow (ed), Foucault Reader, Pantheon Books, Nova Iorque, 1984, p.150.